sábado, 30 de junho de 2012

Um tal Jesus - Capítulo 3: Uma voz no deserto


Capítulo 3

UMA VOZ NO DESERTO

No ano 15 do reinado do imperador Tibério, sendo Pôncio Pilatos governador da Judéia, Herodes vice-rei da Galiléia, seu irmão Felipe vice-rei da Ituréia e Traconítide e Lisânias vice-rei da Abilene, sob o sumo sacerdócio de Anás e Caifás, Deus falou a João, filho de Zacarias, no deserto. João havia passado muitos anos no monastério do Mar Morto. Mas quando sentiu o chamado de Deus, foi pregar percorrendo as margens do rio Jordão e proclamando um batismo de conversão...



Batista: Assim falou o profeta Isaías e eu repito agora! Abram caminho! Deixem passar o Senhor!... O libertador de Israel está chegando e vem depressa!... Vocês não escutam seus passos?... Abram passagem, deixem livre o caminho para que ele possa chegar até nós!



Os gritos de João ressoaram em Betabara e na cidade vizinha de Jericó e seu eco chegou a Jerusalém e se estendeu, como fogo na palha, por todo o país de Israel. Estávamos ansiosos por escutar uma voz que reclamasse justiça e anunciasse a libertação do jugo romano. E viemos do norte e do sul para conhecer o profeta do deserto...



Meu irmão Tiago e eu havíamos viajado desde Cafarnaum. Viemos com nossos companheiros de sempre, Pedro e André, também irmãos, também pescadores do lago Tiberíades e, como nós, simpatizantes do movimento zelota...



Tiago: Este é o homem de que precisamos, Pedro! Diabos, este profeta não tem pêlos na língua e cospe verdades tanto nos de cima, como nos debaixo!

Pedro: O que estamos fazendo aqui, Tiago? Chame seu irmão e vamos ouvi-lo mais de perto. Ei, você, André, vamos mais para lá, ainda que tenhamos de abrir caminho a cotoveladas. Que viva o movimento!



Já fazia setenta anos que nosso país era uma colônia do império romano. O povo estava desesperado por causa daquela escravidão, pela fome e pelos pesados impostos que nos obrigavam a pagar. Por isso, muitos de nós olhávamos com simpatia o movimento zelota que conspirava contra o poder romano e tinha suas guerrilhas espalhadas por todo o país.



Pedro: Que viva o movimento!

Todos: Viva! Viva!

Tiago: Morram os romanos!

Todos: Morram! Morram!



Os zelotas estavam bem organizados, sobretudo na nossa província, a Galiléia. Pedro, André , meu irmão Tiago e eu formávamos um pequeno grupo de apoio em Cafarnaum. Falávamos a todos do movimento e, logicamente, nos metíamos em todo tipo de protesto e confusão que se armava. Bem, alguns de nós armavam... E creio que quando fomos ver o profeta João foi para isso. Depois, ao ouvi-lo falar, nos demos conta de que a coisa também interessava a nós...



Batista: Os de cima gritam: paz, paz, que haja paz! Mas como pode haver paz se não há justiça?... Que paz pode haver entre o leão e o cordeiro, entre o rico e o pobre?... Os debaixo gritam: violência, violência!... Mas dizem isso por ambição, porque também querem subir e abusar dos que ficam em baixo. Têm um leão escondido debaixo da pele de cordeiro!... Assim diz Deus: Todos têm de mudar de atitude. Todos têm de se converter!...



O calor era sufocante. Os mosquitos formavam uma nuvem sobre nossas cabeças... Pessoas de todas as partes, camponeses, artesãos dos povoados, comerciantes de lã, cobradores de impostos, mendigos, doentes, prostitutas e soldados, todos estávamos ali... Tampouco faltavam os vendedores entre o povo, vendendo biscoitos e tâmaras...

Batista: Arrependam-se antes que seja tarde demais!... Os que querem escapar da cólera de Deus, entrem na água, pois este rio limpa o corpo e limpa a alma!... Metam-se na água antes que chegue o fogo e os transforme em cinzas!



Na areia fina da margem amontoavam-se as sandálias e os mantos. João, apoiado numa pedra e com a água até à cintura, ia agarrando pelos cabelos aqueles que queriam se batizar. Afundava-os no rio e quando pensavam que iam se afogar, o braço do profeta os tirava de repente e os empurrava para a margem... Foram centenas os que receberam este batismo de purificação.



Pedro: Olhe, André, veja como brilham os olhos dele, parecem dois carvões acesos!

André: Este profeta é o próprio Elias que desceu do céu em seu carro de fogo! Elias em pessoa!

Pedro: Isto é o fim do mundo!

Tiago: Fiquem aqui, seus palermas! Deixem-me ver o profeta!



O profeta João era um gigante tostado pelo sol do deserto. Vestia-se com uma pele de camelo amarrada com uma correia preta. Nunca havia cortado o cabelo que já lhe chegava até à cintura. Quando o vento soprava, parecia a cabeleira de uma fera selvagem. Era o profeta Elias quem falava por sua boca. Bem, na realidade, João não falava: gritava, rugia, e suas palavras estralavam como pedradas em nossas cabeças.



Batista: Abram o caminho, um caminho reto, sem curvas nem desvios, para que o Libertador chegue mais depressa! Tapem os buracos para que seus pés não tropecem! Derrubem as montanhas se for necessário para que não tenha de dar nenhuma volta e se demore!... Não, não se demora! Já está vindo!... Não escutam seus passos?... Não sentem o seu cheiro no ar?... Já vem o Messias, o Libertador de Israel!



Pedro: Puaff!... Aqui o único cheiro que se sente é de urina. Já estou enjoado...

André: Você é mesmo um porco, heim, Pedro! Cale a boa e escute o que o profeta está falando.

Pedro: Está bem, está bem, André. Eu é que não sei o que vim fazer aqui. Esta gente se mete no rio e faz tudo lá dentro. Em seguida vai outro e sai mais sujo do que entrou. E o profeta fica falando que o rio limpa e purifica, puaff!...

Tiago: Tem razão, Pedro! A água já está parecendo uma sopa e as cabeças das pessoas, os grãos de bico...

Pedro: Ei, vamos para o outro lado, companheiros, isto já está me dando nojo...

André: Olhem só meu irmão dando uma de gente fina... Aqui o que mais fede é você mesmo, Pedro.

Pedro: Ah, é, seu idiota!... Pois você vai engolir essas palavras agora mesmo.

João: Pare com isso, Pedro! Vamos sair um pouco! Não há quem agüente esse calor!...



Saímos um pouco dali para podermos respirar. Pedro estava bravo com André e André bravo comigo e Tiago bravo com todos. Nós quatro éramos bons amigos, mas sempre estávamos brigando...



Tiago: Bom, afinal de contas, do lado de quem está o profeta? Não ouviram o que ele disse? Que todos os de cima e os de baixo, tínhamos de nos converter?

João: Isso tudo é conversa mole, Tiago. Que ele diga claramente com quem está. Apóia os zelotas ou não? É isso que ele tem de dizer.

Pedro: Muito bem, João. Que viva o movimento!

André: Ai, cale essa boca, pô! Qual é que é, Pedro, você parece um papagaio, repetindo sempre a mesma coisa!

Pedro: E você parece que já se deixou embobar pelo batizador.

André: Eu estou com ele. Diga o que disser, apóie a quem apoiar, estou com o profeta.

João: Mas o profeta apóia o movimento ou não? Isto é o que eu quero saber, André.

André: Pois vai lá você mesmo e pergunte pra ele, João. Meta-se no rio e pergunte-lhe de que lado ele está. Você se chama João que nem ele, é seu xará. Na certa ele lhe responde.

João: Pois é isso mesmo que eu vou fazer. Eu não tenho medo nem desse profeta nem de ninguém. Se está com os zelotas, bem-vindo seja. Se está com os romanos, tomara que se afogue  nesse rio fedorento.

André: Não grite tanto, João. A coisa não é tão simples assim!

Tiago: A coisa é muito simples, André: é dar um pontapé no traseiro de todos os romanos e acabou-se!

Pedro: Olhem só! Quem escuta você falar, Tiago, pode até pensar que você é um dos sete cabeças. Vamos ver, ruivão, o que é que você fez até agora pelo movimento, diga? deu meia dúzia de gritos em meia dúzia de povoados?!

Tiago: E você, Pedro, o que é que fez, heim? Atirar pedras de cima dos telhados?... E não me venha de novo com aquela de que cuspiu no capitão romano, porque aqui até os meninos cospem nos soldados!

Pedro: Ah, você não vale nada, Tiago, espere aí que eu vou fechar essa sua boca...

João: Parem com essa discussão, caramba! Vamos ver quem de nós tem coragem de perguntar a João de que lado ele está... Essa é a minha proposta...

Pedro: E eu proponho que a gente vá um pouco mais longe. Esse fedor está chegando até aqui. Eu já estou com o estômago embrulhado. Andem, vamos...



Nós quatro nos distanciamos para comer algumas azeitonas, mas quando saímos na estrada, tivemos uma grande surpresa...



Pedro: Olhem só, aquele cabeção que vem vindo lá embaixo não é o nosso amigo Felipe, o vendedor? Felipe!... Demônios, agora sim é que esse negócio vai ficar bom!

Felipe: Caramba, Pedro. Pedro pedrada. Como vai essa vida, rapaz?... E você, Tiago, boca grande! E João, o briguento!... Que confusão estarão armando por aqui os filhos de Zebedeu?!... E vejam também o magricelo do Andrezinho! Pelas panturrilhas de Salomão, estou muito contente de encontrar vocês.

João: E nós também, Felipe, o maior charlatão de toda a Galiléia!

Tiago: Ô, Felipe, não seja tão mal educado. Quem são estes dois que estão com você?

Felipe: Puxa vida!... É verdade, estava esquecendo de fazer as apresentações... Nata e Jesus..., apresento a vocês esses quatro bandidos, pescadores de caranguejos em Cafarnaum! E estes são dois malandros piores que vocês. Este se chama Natanael, um israelita de boa marca, vive em Caná, trabalha com lã e é mais sovina que uma ratazana e tem uma mulher que nem o rei Davi agüentaria. E este outro, um moreno simpático de Nazaré. Chama-se Jesus. Conserta desde portas até ferraduras. É um faz-de-tudo!... Ah, e tem mais: quando empresta dinheiro nunca cobra juros... O ruim é que nunca tem, ele é que sempre pede emprestado! Senhores, está dito tudo!

Pedro: Pois então, é como se nos conhecêssemos toda a vida. E agora vamos encher o bucho que já está na hora.



E lá fomos nós sete comer e conversar no meio daquele burburinho de gente. Quando caia a noite, todo mundo se esparramava pela margem do rio. Procuravam galhos secos e acendiam fogueiras para esquentar-se. Outros cortavam folhas de palmeira e faziam tendas para dormir de baixo. O Jordão estava repleto de gente. Todos nós tínhamos vindo procurar o profeta João e João continuava procurando o Messias, o Libertador que ele anunciava.


Comentário
Tanto o Evangelho de Marcos como o de João iniciam os relatos da vida de Jesus com a pregação do Batista às margens do rio Jordão. É uma forma de destacar a estreita relação que une a mensagem de justiça do grande profeta com a Boa Notícia de Jesus.



As palavras do Batista conservadas nos relatos evangélicos são ataques acesos contra as injustiças e o estado de corrupção do país, começando pelo próprio Herodes, rei da Galiléia, a quem João criticava em público. Por outra parte, João entendia sua missão como trabalho de preparação para a chegada do Messias que inauguraria um mundo novo baseado na igualdade de todos os homens e na soberania de Deus.



Para preparar este mundo novo, além de seus proclamas e discursos, João usava um rito que se tornou muito popular: o batismo. As pessoas que vinham para ouvi-lo confessavam seus pecados e João as submergia nas águas do Jordão. Era um símbolo de limpeza: a água purifica o sujo. E também de renascimento, de começar de novo, deixando para trás o mundo antigo do fatalismo e da injustiça: da água nasce a vida, na água começa sempre a vida. Este batismo de João não era um rito mágico. De nada servia se não havia uma mudança real nas atitudes dos que se batizavam. Eram batismos coletivos. As massas populares - principalmente os pobres de Israel - aderiam à mensagem de João e entravam no rio preparando assim a chegada do Messias.



João pregou e batizou no deserto, às margens do rio Jordão, em um vau chamado comumente Betabara. Atualmente, este lugar é zona fronteiriça entre Israel e a Jordânia. O Jordão “que desce” é praticamente o único rio que rega a terra de Israel. Nasce no Norte, perto do monte Hermon, e desemboca nas águas salgadas do Mar Morto, o lugar mais baixo do planeta, um fosso de quase 400 metros abaixo do nível do mar.



A austeridade de João, o Batista, refletia-se em sua vestimenta e em sua comida, que granjeou também popularidade entre as pessoas que viam naquele homem curtido e selvagem o profeta Elias que regressava para defender o seu povo. Os longos cabelos de João era costume entre os que se comprometiam a um serviço total a Deus: voto dos nazireus (Jz 13,5; Sam 1,11).



Fazia já uns setenta anos que a Palestina era uma colônia romana. Naquela época, Roma era o império mais forte da terra, como hoje o são os Estados Unidos. A maioria das nações conhecidas então eram províncias submetidas ao imperialismo romano. Isso significava nos países dominados: governos dependentes, ocupação por exércitos estrangeiros e exploração do povo de quem se cobrava impostos excessivos e ao qual se controlava, impedindo-lhes a participação nas decisões políticas e econômicas. A capital do império - Roma - foi destruída quase quinhentos anos depois da morte de Jesus.



Tanto na Galiléia como na Judéia, existia um grupo descontente com o domínio romano. Entre os opositores, destacava-se o grupo ou partido dos zelotas. Atuavam na clandestinidade, alguns como guerrilheiros, especialmente na região nortista da Galiléia, onde o controle de Roma era mais fraco. Os zelotas eram nacionalistas, pregavam a Deus como único rei e se opunham a todo poder estrangeiro. Negavam-se, por isso, ao pagamento dos impostos e aos censos ordenados pelo império. Os camponeses e pobres de Israel, espoliados pelos tributos, simpatizavam com o movimento e protegiam seus membros. Os zelotas também tinham um programa de reforma agrária: proclamavam que a propriedade devia ser justamente distribuída, pois as diferenças sociais eram extremas. Proclamavam também que as dívidas deviam ser canceladas, inspirando-se para isso na lei mosáica do Ano Jubilar. O grupo zelota parece ter sido fundado por um tal Judas, o Galileu, pouco depois do nascimento de Jesus, ao colocar-se à frente do povo que se negava a pagar impostos. A rebelião popular foi sufocada pelos romanos com sangue e fogo. A palavra “zelota” vem de “zelo”: zelosos da honra de Deus, apaixonados, fanáticos. O grupo mais ativo dentro do partido zelota era o dos sicários: terroristas que levavam sempre debaixo da túnica pequenos punhais (sicas) e praticavam com freqüência atentados contra os romanos.



Entre os discípulos de Jesus é muito provável que muitos pertencessem ao movimento zelota. O Evangelho fala claramente de um ao chamá-lo de “Simão, o zelota” (Lc 6,15). O sobrenome de Judas “Iscariote” faria referência à sua filiação “sicária”. Por outro lado, o apelido que Jesus dá aos irmãos Tiago e João “boanerges” (filhos do trovão) e o sobrenome de Pedro (barjona) são, para alguns autores especializados no tema dos zelotas, nomes de guerra, usados pelos discípulos.



(Mateus, 3,1-6; Marcos 1,1-8; Lucas 3,1-6)

domingo, 24 de junho de 2012

Um tal Jesus - Capítulo 2: A caminho do Jordão


Capítulo 2

A CAMINHO DO JORDÃO

Naqueles tempos, eram muitos os que iam ao Jordão buscando João, o Batista. A poderosa voz do profeta havia enchido de gente os caminhos secos e poeirentos da Judéia. E também, ainda que um pouco menos, os caminhos da Galiléia que, com a primavera, transbordava de flores, de espigas novas e erva verde tão alta que às vezes chegava à cintura...

Felipe: Estou morrendo de vontade de ver a cabeleira desse profeta. Me disseram que é o tipo mais santo que pisou esta terra desde muitos anos. E outros dizem que tem um mau gênio que não há quem o agüente...!
Natanael: Uff... Felipe, estou cansado..! Eu estou morrendo é de vontade de esticar-me um pouco sobre este capim e tirar uma soneca... Hoje levantamos cedo demais...
Felipe: Nada de soneca, Natanael, temos de chegar a Magdala para o almoço. E nosso tempo está contado. Jasão, o dono da taverna, tem os melhores peixes do lugar... Se chegarmos tarde só vai sobrar para nós aqueles dourados já meio passados. Ele sempre faz isso, eu o conheço bem. Estive por lá na semana passada e tive de comer as sobras dos que chegaram primeiro.

Felipe e Natanael eram velhos amigos. Conheciam-se desde sempre. Haviam brincado juntos e, de vez em quando, trabalhado juntos também. Fazia vários anos que haviam separado seus negócios; Felipe ia de povoado em povoado vendendo um pouco de tudo: amuletos, pentes, tesouras, anzóis, quinquilharias... de tudo. Natanael tinha uma oficina em Caná, da Galiléia. Ali trabalhava com lã e, de vez em quando, também coisas de couro.

Natanael: Alegre-se, homem!
Felipe: É claro que me alegro, Nata, claro que me alegro. É o que eu digo: se este João, o Batizador é, como dizem, um profeta, está chegando a hora da esperança para nós, os mortos de fome... E isso eu já venho notando. Nunca vendi tanta coisa como agora. Você vai pelos caminhos, se encontra com gente que vai pra lá, para o Jordão, e sem se dar conta acaba vendendo uma tranqueira qualquer para a viagem, percebe?  Por isso que digo que João é um profeta. Ele me trouxe sorte...
Natanael: Não seja tão animal, Felipe. Eu não consigo entender como é que de um cabeção tão grande possam sair idéias tão pequenas... O que é que você pensa que é um profeta?
Felipe: Esta não é uma idéia pequena, Nata. O messias não vai começar um mundo melhor que este? Eh? Não vai fazer justiça? Pois fazer justiça é eu encher meus bolsos de moedas... Já passei muita fome. A hora de Deus tem de ser a minha hora também. Olhe, Nata, trouxe tudo isso pra vender. Aproveito a viagem, compreende?
Natanael: Mas, o que é que você tem aí? Colares?
Felipe: O que você acha, não são lindos? Olhe este!
Natanael: Mas Felipe, pra quem você vai vender esses colares?
Felipe: Ui, dizem que o Jordão está cheio de mulheres... uh,uh,uh...! E aí, já viu... Elas mordem fácil, as bobonas. E eu lhes faço um favor vendendo esses badulaques tão bonitos... Eu as ajudo a melhorar seu negócio...
Natanael: Vai muita mulher da vida pra ver o profeta?
Felipe: De montão!... Ao menos é isso que dizem os que vêm de lá...
Natanael: Bendito seja o Altíssimo! Quem mandou eu vir com você... Já lhe disse que esse profeta...
Felipe: Esse profeta o que? Esse é um profeta dos pobres. Anuncia grandes mudanças para a Terra, Natanael. Temos de escutá-lo. A voz de Deus tem de ser escutada sempre...

Ao meio dia Felipe e Natanael chegaram a Magdala. Era uma cidade que cheirava a vinho, a mulheres e a peixe.

Ficava às margens do grande lago de Tiberíades. Por aquela cidade entravam muitas caravanas de viajantes e camelos vindos das montanhas do norte. Descansavam em Magdala e continuavam a viagem por terras galiléias...

Jasão: Como é que vai, Felipe!? Fazia muito tempo que não o víamos por aqui, seu grande sem-vergonha... O que? O que você está vendendo hoje? Olhe, rapaz, quando começa a lua cheia, e começou ontem, o tempo fica ruim para os negócios...
Felipe: Não venho vender nada, Jasão. Estamos só de passagem, este amigo e eu.
Jasão: E quem é esse seu amigo? Nunca o vi antes por aqui...
Felipe: Bah! ele vem pouco por essas bandas. Tem muito que fazer com sua mulher, seus filhos, sua sogra, sua oficina. É de Caná. Quase não sai de lá... Muito trabalho, você sabe...
Jasão: E o que você veio buscar em Magdala, amigo? Está cansado da sua mulher? Ah, Ah, Ah, aqui em Magdala há fêmeas pra acabar com todos os males... Escute, você me parece um homem sério. Como se chama?
Natanael: Natanael.
Jasão: Natanael. Muito bem. E o que querem Felipe e Natanael? Vão passar a noite aqui? Posso arranjar duas boas camas.
Felipe: Nada de cama, Jasão. Temos de seguir caminho.
Natanael: Eu estou com sono, mas... bem, já, já a gente se estica um pouco debaixo de alguma árvore...
Jasão: E para onde vão os amigos com tanta pressa?
Felipe: Vamos ao Jordão ver aquele profeta.
Jasão: Pelas barbas de Moisés!... Outros que morderam o anzol!... Mas, Felipe, até você?... O profeta... O que é que você perdeu no fundo do rio para ir meter esse cabeção naquela água suja? Vai ver que este carequinha com cara de boa gente o fez engolir essa loucura... Andar mais de cem milhas para ver aquele cabeludo!
Felipe: Olha, Jasão, não vamos começar a discutir. O que nós temos é fome.
Jasão: Lá onde está o profeta vocês vão passar mais fome ainda. Dizem que esse João está pele e osso, que só come gafanhoto e que obriga as pessoas a jejuar e fazer penitência... Sendo assim, vou preparar pra vocês uma panelada pra encher suas tripas por uma semana.
Felipe: Escute, Jasão, capricha no peixe, e que ele esteja bem fresquinho, heim!...

A taverna de Jasão começou a encher-se de gente. O cheiro de peixe e vinho ficava cada vez mais forte. As pessoas comiam no chão ou sobre alguma pedra. Os que chegaram primeiro aproveitaram os poucos bancos de madeira que havia. Felipe e Natanael se meteram num canto com seus dourados recém-assados, suas azeitonas e seu molho. Pouco tempo depois, quando só ficaram as espinhas no prato, viram entrar pela porta alguém que conheciam...

Felipe: Nossa, vejam só quem mostra as orelhas!
Natanael: Quem é aquele?
Felipe: Jesus, o filho de Maria, o de Nazaré... O que será que ele está fazendo por aqui? Ei, Jesus!... Jesus! Venha pra cá!

Pulando por cima dos pratos e cuidando para não chutar alguma jarra de vinho, Jesus abriu passagem até o canto onde estavam Felipe e Natanael...

Jesus: E então, Felipe...? Como vai, Natanael? A verdade é que não esperava encontrar nenhum conhecido por aqui.
Felipe: E aí?  Veio fazer algum trabalhinho em Magdala?
Jesus: Não. Estou de viagem para o Jordão.
Felipe. Vai pro Jordão? Até você vai pra lá?
Jesus: Vocês também vão ver João, o profeta?
Felipe: Mas é claro que sim. Puxa vida, que sorte a nossa!...
Natanael: Ele meteu essa idéia na cabeça e acabou me envolvendo também...
Jesus: E o que você tem feito, Natanael? Fechou sua oficina?
Natanael: Bah!, é que eu tenho pouco trabalho agora. Deixei a mulher por lá, caso apareça alguma coisa. Creio que não ficaremos muito tempo lá no Jordão...
Felipe: Ei, Jasão, mande mais um par de dourados e uma jarra de vinho! Agora são três os que vão ver o profeta!
Natanael: Não grite tanto, Felipe!... Todo mundo tem  de ficar sabendo da nossa viagem? Eles vão rir de nós...
Felipe: Pois que riam... Pode estar certo de que alguns daqui também vão pro Jordão, quer ver?... Ei, amigos, alguém de vocês vai pro Jordão?
Natanael: Cale a boca de uma vez, Felipe... por favor! ... Que homem!
Felipe: Esse profeta pôs em movimento todo o povo de Israel. Eu que ando pra cá e pra lá  estou vendo. Pôr tanta gente dançando é sinal de que a coisa vem de Deus. Você não acha, Jesus?
Jesus: Eu creio que sim. É por isso que vou pra lá.
Jasão: Ahahaha! Então você também vai lá pro rio? De onde você é?
Jesus: De Nazaré.
Jasão: De Nazaré? Pois dessa biboca danada não acredito que foram muitos ao Jordão... Também, ali tem mais rato que gente...
Jesus: Não creia nisso, faz alguns dias foi o Benjamim, filho de Raquel. Esse é meu amigo.
Jasão: E agora é você que vai!? Que cambada! São como as ovelhas, aonde vai uma, vão todas! Ah! que homens mais malucos! Sonhando com profetas e sinais de Deus, quando podem ficar por aqui e aproveitar a vida... E então Nazareno, não está a fim? Tenho um vinho de primeira e umas mulheres que estão ó... Lá na sua terra não tem nada disso. Por que não fica por aqui alguns dias e deixa esses dois malucos irem para o sul?
Jesus: Olhe, agora quero conhecer o profeta. Outro dia fico para conhecer Magdala, prometo.
Jasão: Que cabeças mais duras e cheias de histórias. Vamos lá, Nazareno, enche as tripas com esses dourados e depois a gente conversa. Vamos ver se não muda de idéia. E agora vou indo, tenho muito que fazer.
Felipe: Estão muito bons. Os melhores do lago.
Jesus: Estou vendo mesmo, Felipe, você os engole com cabeça, rabo e espinha!
Felipe: A mulher de Jasão tem mãos de anjo para cozinhar...
Natanael: Mas Jasão é um velhaco. Fica gozando dos profetas. Isso é algo muito sério, o mais sério do mundo.
Felipe: Escute, Jesus, você acredita que João será o libertador de Israel? Há muita gente que diz que sim... e outros que não.
Jesus: Pois eu não sei, Felipe. É preciso primeiro vê-lo e ouvir o que diz...
Natanael: O libertador de Israel terá de limpar este país de todas as suas porcarias. Dizem que João mete uma pessoa de cabeça no rio e logo a tira como nova.
Felipe: Caramba! Estou gostando disso! Já faz uns sete meses que não tomo banho!
Jesus: A única coisa de que estou seguro é que João é um profeta. Faz muito tempo que não aparece neste país um homem que dissesse tantas verdades juntas!
Natanael: Pois eu não estou seguro de nada. Eu nunca vi um profeta. Esse negócio de profeta é coisa de outro tempo, quando Deus se lembrava de seu povo e o governava...
Jesus: Pois eu acho, Natanael, que Deus voltou a se lembrar de nós e nos mandou João.
Felipe: Deus ou o diabo pra mim dá no mesmo! O que eu quero é que este batizador dê de uma vez o grito...
Natanael: Que grito, Felipe?
Felipe: O grito que está fazendo falta por aqui, caramba!!!
Natanael: Cale a boca, Felipe!
Felipe: Amarrem bem as calças que agora a coisa vai ser pra valer!
Natanael: Felipe, pelo amor de Deus!
Felipe: Todos juntos, como um só homem, e pôr pra quebrar...!
Natanael: Não faça tanto barulho, Felipe! Em vez de ir para o Jordão, vamos acabar indo pra cadeia. E de cabeça! Vamos, Jesus, acabe logo de chupar essas espinhas e vamos embora daqui!!!
Jesus: Está bem, vamos indo, Felipe. Deixe os discursos para outro momento, porque ainda nos restam dois dias de caminho para ver as barbas de João, o Batizador.

João batizava em Betabara de Peréia, ao sul da velha cidade de Jericó, perto do Mar Morto. E eram muitos os que naqueles dias se achegavam para escutar suas palavras, buscando nele o libertador de Israel.

Comentários
A pregação de justiça de João, o Batista, despertou as esperanças do povo de Israel na vinda próxima do Messias e desencadeou um autêntico movimento popular. Pessoas de toda a Judéia e também  da província nortista da Galiléia viajavam até o Jordão para ouvir João e preparar-se - pelo batismo no rio - para receber o esperado libertador.
Messiasé uma palavra aramaica que significa “ungido”. A palavra grega equivalente é “Cristo”. Em Israel, os reis a serem elevados ao trono, eram ungidos com azeite como sinal de santificação e bênção de Deus (ISam 10,1). O povo de Israel, ao longo de sua história - tecida de fracassos, derrotas e escravidões - esperou de Deus um libertador definitivo que trouxesse uma paz duradoura.
Cerca de cem anos antes do nascimento de Jesus começou-se a chamar de “Messias” este libertador esperado, pois na crença do povo ele seria um rei poderoso que faria de Israel uma grande nação, expulsaria de suas terras os dominadores estrangeiros e faria, por fim, justiça aos pobres. Quando as primeiras comunidades cristãs reconhecem em Jesus o Messias, começam a chamá-lo também de Cristo, isto é, o Ungido de Deus, seu enviado, seu Bendito. Dos quatro evangelhos, o de Mateus é o que mais marca o caráter messiânico de Jesus, por ser um texto dirigido especialmente aos leitores judeus. A vinda mais ou menos próxima do Messias, o que faria este personagem, o modo de reconhecê-lo, sua procedência - alguns esperavam que fosse um anjo, outros um grande sacerdote - era tema das conversas populares nos tempos de Jesus.
Para o povo de Israel, os profetas eram homens de Deus que falavam em seu nome. Interpretavam o que acontecia, denunciavam as injustiças, anunciavam os planos de Deus e eram temidos pelos reis e governantes. Depois de anos e anos sem ter nenhum profeta no país, o povo reconheceu em João um profeta. E alguns até chegaram a ver nele o Messias esperado. Isto explica a mobilização das massas que a palavra do Batista despertou.
Neste episódio se apresentam dois discípulos de Jesus: Felipe e Natanael. De Felipe existem poucos dados: era de Betsaida e é mencionado somente cinco vezes nos textos evangélicos. De Natanael, sabe-se menos ainda. João o menciona apenas duas vezes. Nas listas dos doze apóstolos sempre se identificou Natanael com Bartolomeu. Felipe, vendedor ambulante, alegre, ingênuo e sempre preocupado com seu negócio de bugigangas e Natanael, curtidor, com mais anos nas costas, desenganado e indeciso, são homens pobres que vivem na insegurança própria de sua classe social. Foi nas classes baixas onde pegou com mais força a mensagem de libertação de João, o Batista.
Magdala era uma cidade às margens do lago de Tiberíades, no caminho das caravanas que entravam na Galiléia a partir das montanhas da Síria. Como cidade de passagem, prosperava nela as tavernas e prostíbulos, da mesma forma como acontecem nos portos de nossos países. Da Magdala evangélica, ficaram apenas restos arqueológicos.
(Mateus 3,5-6; Marcos 1,5; Lucas 3,7).