sábado, 25 de agosto de 2012

Um tal Jesus – Capítulo 11: Rumo à Galiléia dos gentios

Neste 11º capítulo da novela sobre o contexto histórico e a trajetória de Jesus, o “moreno de Nazaré” volta de sua reflexão no deserto e vai a Betabara procurar o profeta João para dizer o que havia decido fazer de sua vida, mas, ao chegar ao local, tudo está vazio. Ele descobre que Herodes havia prendido João. E agora... ?

Rumo à Galiléia dos gentios

Quando Jesus saiu do deserto, tinha os pés inchados, umas olheiras enormes e o cabelo e a barba cheios de areia. Apesar do cansaço e da fome, trazia o coração contente. E tinha pressa. Despediu-se do velho samaritano que o havia recolhido em seu camelo e voltou ao Jordão...

Jesus: Tenho de ver João... Tenho de falar com ele... E direi: João, estou decidido a servir a meu povo. Por onde devo começar?... O que tenho de fazer?... Quer que eu fique aqui batizando com você?... Estou disposto a tudo... Já não tenho medo... bem, sim, tenho medo, mas estou disposto a tudo... Deus me encheu de coragem no deserto...

Mas quando Jesus chegou a Betabara, na curva do rio onde João batizava, viu que na margem do Jordão não havia ninguém... Tudo estava vazio. Já não havia batismos nem caravanas de peregrinos. João não estava mais lá. De longe, Jesus viu um par de mulheres e correu para perguntar-lhes:

Jesus: Ei, vocês duas, esperem!... Não fujam, não quero lhes fazer nenhum mal... esperem!
Madalena: Você tem a cara de louco ou de leproso. Quem é você?
Jesus: Acontece que eu venho do deserto e... bem, é por isso que estou sujo e... Mas não se assustem. Esperem...
Velha: O que foi, meu rapaz? A polícia de Herodes está atrás de você também?
Jesus: Não, vovó, vim procurar o profeta João e... o que aconteceu por aqui?
Velha: Está igual a esta aí. Ela também chegou quando terminou o negócio. A vida é assim...
Jesus: Mas diga-me: o que houve? Onde está João?... Onde está todo mundo?
Madalena: O rei Herodes levou o profeta. E o Jordão ficou vazio.
Jesus: Quer dizer que Herodes prendeu João?
Velha: Você não sabia? A notícia correu como labaredas por todo o país. Ai, que desgraça tão grande, meu Deus!
Jesus: Mas, como essa raposa se atreveu? Com que direito?
Madalena: Com o direito da força. Mandou seus soldados com chicotes e espadas... E levaram o profeta amarrado ao rabo de um cavalo.
Jesus: E para onde o levaram, caramba, ele não tinha medo nem de Herodes nem de qualquer diabo que se pusesse à sua frente.
Velha: Pois o prenderam e qualquer dia desses o matarão. Que calamidade, meu Deus! Mas o jeito é se conformar. Acabou-se o profeta!
Madalena: Diga melhor, que acabou-se seu negócio de rosquinhas, velha Rute. Isso lhe dói mais que as correntes do batizador.
Velha: Essa é boa!... Responda-me, rapaz: sou uma pobre viúva que ganhava a vida vendendo rosquinhas aos penitentes que se batizavam...
Madalena: E que saíam do rio com mais fome do que arrependimento.
Velha: Está bem, mas se eu podia vender minhas coisinhas graças às pessoas que vinham escutar João, que mal há nisso?
Jesus: Está certo, vovó. A uns o profeta ajudava com suas palavras e a você ajudou melhorando seu negócio!
Madalena: Pois a mim não me ajudou em  nada! Viagem perdida!
Jesus: Você veio batizar-se com João?
Madalena: Bem, sim... sim, quero dizer...
Velha: Ela está rindo porque... bem, dá pra ver as pinturas que ela tem nas bochechas... Os homens de Cafarnaum correram para ver o profeta e esta aqui correu atrás dos homens de Cafarnaum, rá, rá, rá...
Madalena: O que você quer que eu faça? Cada um vive como pode, não é, patrício?
Velha: Quando chegou aqui já haviam espantado seus clientes... Ficou tudo vazio... Que azar, hein, Maria?!
Jesus: Se chama Maria?
Madalena: Sim, e você?
Jesus: Jesus. E apesar dessa minha cara horrível, sou boa pessoa. Eu lhe garanto!
Velha: Você fala como os galileus. Você também é de lá, como esta?
Jesus: Sim, sou de Nazaré, um vilarejo do interior.
Madalena: Pois eu sou de Magdala, junto ao lago.
Velha: Não precisa nem dizer! As madalenas se conhece pelo perfume...
Jesus: Você não falou antes de Cafarnaum?
Madalena: Bem, eu nasci em Magdala, mas logo minha mãe morreu, fiquei só... Agora vivo em Cafarnaum. E trabalho no que posso.
Velha: Trabalha de rameira para todos esses pescadores sem-vergonhas que vivem no cais!
Jesus: Puxa, que coincidência! Há alguns dias conheci um grupo de amigos que são de lá... Talvez você até os conheça...
Madalena: Pode estar certo que sim. Conheço todos os homens de Cafarnaum... Como eles se chamam?
Jesus: Pedro, Tiago, João e André...
Madalena: Como não haveria de conhecê-los!... André é um pouco sério, mas esses dois “irmãozinhos” Tiago e João... se você os vir numa esquina, suma pela outra... E esse Pedro, então... é melhor nem falar!
Jesus: Pois eles me pareceram muito simpáticos....
Madalena: Eu não fui com a cara deles... começaram a meter a língua em mim... Quero distância desses caras. E falei isso bem na cara deles: “com vocês eu não quero nadinha de nada e antes de falar comigo outra vez, lavem bem a boca primeiro”...
Velha: Quem a escuta falar assim, chega até a pensar que você é uma grande senhora!
Madalena: Eu não sou. Mas esse patrício tem cara de gente decente! Cá entre nós: não se meta com essa cambada e nem apareça pela casa deles. Escute bem o que eu digo...
Velha: Ai, quem tinha cara de gente decente era o projeta João! Que olhar, que jeito de falar! Era um enviado do próprio Deus, isso eu lhes digo! Mas agora... esse país se afundou!. Israel ficou que nem um menino órfão. Já não há profeta que lhe dê a mão, que o guie e o ensine a caminhar. Estamos perdidos!
Jesus: Não fale assim, vovó! João abriu o caminho. Nós temos de continuá-lo.
Velha: Não, meu filho, isso já se acabou. João era a nossa voz, a voz dos pobres. Você nunca o ouviu? Ele gritava, gritava forte! E sabe por que? Porque tinha mil vozes na garganta, as vozes de todos nós, os infelizes, os que nunca tivemos o direito de falar... Quem vai reclamar justiça para nós agora, diga-me?...
Jesus: Nós mesmos, vovó. Sim, por que não? Agora nós temos de fazer soar nossa própria voz, a voz dos que não têm nada. Sim, sim, temos: temos Deus do nosso lado. Deus luta conosco.
Velha: João falava sempre de um libertador grande e forte que viria depois dele... Mas, veja: ele está preso e o outro não chega!
Jesus: Mas chegará, vovó! Chegará o Messias e chegará o Reino de Deus. Agora o que é preciso é não perder a esperança!
Velha: Não, meu rapaz, o que é preciso é que outro pegue o bastão do profeta e siga seu exemplo e continue falando ao povo como João.
Madalena: Mas, onde estará esse valente? Hein? Quem se atreverá? Bah, neste país já não se fazem homens como João, minha querida!

Jesus: Pois eu creio que se faz. Eu creio que muitos estariam dispostos a dar sua vida pela justiça. Mas estão esperando um sinal para começar. Estão esperando alguém que lhes diga: “Está na hora, companheiros, o Reino de Deus está próximo! E com ele vem nossa Libertação”!... João está preso. Mas o Messias anda solto. Está chegando!... Não o sentem em seus corações?... Alegre-se, vovó, e você também, Maria. Logo seremos livres!
Madalena: O que você está dizendo? Hummm... Parece que o sol do deserto lhe queimou a moleira.
Velha: Venha, meu rapaz, você deve estar muito cansado. Minha casinha fica aqui perto. Maria e eu lhe prepararemos alguma coisa pra comer... Vamos...
Jesus: Obrigado por tudo, vovó. Já tenho de ir embora. Me esperam na Galiléia.
Velha: Você gostou das minhas rosquinhas?
Jesus: Estavam muito gostosas, pode crer!
Velha: Então pega mais essas...
Velha: Leve algumas para sua mãe também. E diga-lhe que vão da parte de uma velha que vive junto ao Jordão e que a quer muito.
Jesus: Mas a senhora nem conhece minha mãe...
Velha: Não importa. Conheci você. E achei você muito simpático, rapaz. Sua mãe deve ser igual...
Madalena: Adeus, Jesus. Eu vou para a Galiléia na próxima semana. Se alguma vez passar por Cafarnaum... bem, venha visitar-me se não tiver vergonha de entrar na minha casa.
Jesus: Claro que irei, Maria. Adeus, vozinha!... Quando o Messias chegar, receba-o com essas rosquinhas de mel. Elas lhe alegrarão o coração tanto quanto alegraram a mim...
Velha: Adeus, meu filho, adeus!... Boa viagem!


E Jesus empreendeu o longo caminho de regresso para o Norte, rumo à Galiléia dos gentios. Ia cansado, com as sandálias esfarrapadas e a túnica meio rasgada. Mas a fadiga não o impedia de avançar. Ao contrário, ia mais depressa que nunca...

Jesus: Alguém precisa recolher a voz de João... Alguém precisa dar esperança ao povo... Senhor, mande logo o Libertador!... Onde está este outro que virá?... Não podemos começar a trabalhar enquanto o esperamos?... As espigas já estão maduras, é preciso começar a colheita... Eu não posso continuar esperando mais... Tenho de fazer alguma coisa já... Tenho de seguir o exemplo de João...

Jesus caminhou muitas horas pela beira do rio. No segundo dia, antes de escurecer, chegou à altura de Gadara. Dali se divisava, redondo como um anel de noiva, o lago de Tiberíades... Estava em terra galiléia!... De repente começou a chover... A água do céu devolvia à terra sua frescura e sua fecundidade. Jesus sentiu uma alegria imensa em seu coração. Era como se visse pela primeira vez sua querida terra nortista. Era como se a Galiléia, molhada e às escuras, lhe desse secretamente suas boas vindas.

Jesus: Já estou outra vez aqui, Galiléia, minha pátria, minha irmã!

Terra de Zabulon, terra de Neftali!
Caminho do mar, do outro lado do Jordão, Galiléia dos gentios!
O povo que andava nas trevas, viu uma luz, sobre os que viviam nas sombras da morte, brilhou uma grande luz!
Aumentaste o gozo, fizeste imensa a alegria e se alegram ao ver-te, como os que cantam no dia da colheita.
Porque quebraste o jugo que pesava sobre eles, quebraste a cetro do tirano e a bota que pisava com soberba e o manto manchado de sangue serão arrojados ao fogo.
Porque um libertador nos nasceu  e a paz que ele nos traz não terá fim!


Comentários
Maria Madalena, tantas vezes mencionada nos evangelhos, era uma prostituta. Maria era um nome de mulher muito freqüente nos tempos de Jesus. “Madalena” faz referência ao seu provável lugar de nascimento, “Magdala”. Então - como ainda acontece agora em muitos lugares - a prostituição, mais que um problema moral, refletia um problema econômico. Uma mulher só e sem trabalho, numa sociedade machista, vê-se empurrada em muitas ocasiões a se vender para poder sobreviver. Sem dúvida, Maria de Magdala seria uma dessas mulheres. Provavelmente, seria jovem, pois a prostituição se estendia muito entre as meninas de treze ou catorze anos. As imagens tradicionais de Maria Madalena, uma senhora da alta sociedade, com algum deslize sentimental, bem vestida e muito perfumada, não tem nada a ver com a vulgaridade de uma prostituta da classe mais baixa como deve ter sido a Madalena.

Ao conhecer o pensamento de João Batista, Jesus dá um novo passo na consciência de sua própria vocação. Israel ficou órfã, ao lhe ser tirado o profeta que lhe anunciava o projeto de Libertação de Deus. Jesus sente que deve tomar o lugar de João. Retomará sua mensagem de justiça e a levará à sua terra, a Galiléia. Não batizará como João nem esperará que o povo vá em sua busca, mas se misturará com as pessoas como um a mais. E a partir das ruas, dos bairros e das praças, anunciará aos pobres a libertação que Deus promete.

Das margens do Jordão, Jesus se põe a caminho rumo ao Norte. É um trajeto longo, de umas três ou quatro jornadas a pé, que se pode percorrer seguindo a beira do rio através da Peréia e da Decápole, ou tomando a rota das montanhas pela região dos samaritanos.

“Galiléia dos gentios” é um qualificativo que o profeta Isaias havia dado às terras do norte, uns setecentos anos antes de Jesus. Expressava assim que aquela região, a pátria de Jesus, que nas origens pertenceu a Zabulon e a Neftali, filhos do velho patriarca Jacó, pareciam como que abandonadas por Deus, entregue aos “gentios” (pagãos, estrangeiros). Eram tempos em que os galileus foram feitos prisioneiros e deportados. Sofreram muito e o futuro parecia fechado para eles. O profeta lhes anuncia uma luz no meio de sua escuridão.

Quando Jesus começou  a anunciar o Reino de Deus em terras galiléias, depois de seu batismo no rio Jordão, Mateus recordou esta profecia de Isaias e a incluiu no seu evangelho.



(Mateus 4,12-17)

domingo, 19 de agosto de 2012

Um tal Jesus – Capítulo 10: No cárcere de Maqueronte

Neste capítulo do contexto histórico e da trajetória de Jesus, o tirano Herodes prende o profeta João, o batista, que fala um monte de verdades sobre o “rei da Galiléia”. Mas, Herodes teme fazer qualquer coisa contra João, com medo da reação popular. O texto abaixo revela muito sobre esse “rei”, que ajudou a condenar Jesus à morte na cruz.


No cárcere de Maqueronte

A voz do profeta João, clamando por justiça e anunciando a chegada do Libertador de Israel, era cada dia mais firme e mais apressada. Os que iam escutá-lo sentiam como se o profeta tivesse pressa, como se soubesse que seus dias estavam contados...

Batista: Abram bem os olhos! Tenham as mãos preparadas, para que quando venha aquele que há de vir, vocês o reconheçam e saiam ao seu encontro!... Ninguém deve pensar: já me batizei, já me purifiquei no rio, isto basta! Batizar-se não é fim de caminho, mas começo! Quando o Messias chegar terá começado a libertação de Israel. E todos teremos de segui-lo e colaborar com ele! Quando vier...

Uma mulher: Ai, caramba, acho que já estou ouvindo as trombetas do Messias! Você não está escutando, patrício, esse barulho?

Um homem: Deixe de conversa mole mulher e preste atenção no que o profeta está falando...

Uma mulher: Ouça, patrício, eu não estou surda, não! Pois eu lhe digo que por aí vem chegando a caravana do Messias!

Um rapaz: Olhem lá! É o Messias que já vem!

Todos: O Messias! Profeta João, aí vem o Messias!

Pelo caminho que descia de Jericó, vinha uma longa caravana de camelos, muito enfeitados e muito luxuosos. Abria a caminhada um grupo de escravos com trombetas e vestidos de seda. Mas não, não era o Messias que se aproximava. Era o rei Herodes e sua corte que se transladavam para o palácio de Maqueronte, na outra margem do Jordão, junto ao Mar Morto. Para chegar até lá, tinham de passar perto de Betabara.

Um homem: Senhora, se esse é o Libertador que esperamos, então já podemos morrer... É Herodes e sua gente!

Uma mulher: Olhe só como balança a carroça...! Esse aí está bem gordo...

Um homem: E que se arrebente!

Herodes Antipas era o governador da Galiléia, o último dos filhos de Herodes o Grande. Seu pai se fizera odiar pelo povo por causa dos impostos tão pesados com que nos havia oprimido. E como tal pau, tal lasca, este Herodes, seu filho, era também um homem sem escrúpulos, um homem injusto e cheio de vícios, que vivia de costas para Deus e de costas para o sofrimento de seu povo.

Um homem: Ei, profeta João, o rei Herodes vem vindo por aí!

Uma mulher: Eu não acredito que esse sujeito se atreva a vir até aqui...

Um homem: Deixe-o, senhora. De repente ele vai querer batizar-se e, gordo como está, acabará afundando nas águas do rio...

Uma mulher: Ou nós todos o afundamos.

O profeta João havia ficado estranhamente calado olhando a passagem da caravana. Mas a carroça em que ia Herodes não se aproximou. Herodes era um homem muito supersticioso e tinha medo daquele profeta de longos cabelos e de palavra como espada, de quem já ouvira contar tantas coisas. A caravana seguiu seu caminho até o palácio de Maqueronte. Mas enquanto os camelos ainda eram vistos de longe, João saiu de seu silêncio e, com a força de um raio, virou-se para todos os que enchiam as margens do rio...

Batista: Até aqui chega o seu cheiro!... Cheira a podre!... Quando o pescado apodrece começa a feder pela cabeça. As injustiças deste país já são demasiado grandes... Fedem! E fedem mais que tudo, as cabeças deste país! Herodes fede!... Seu reino está corrompido. Está construído sobre o sangue dos inocentes e sobre o suor dos pobres... Mas seu trono não está firme! Está todo comido pelo cupim!... Do jeito que eu quebro este bastão velho, assim Deus quebrará o trono do rei Herodes! Cairá, o trono de Herodes cairá!... Será derrubado entre gritos de alegria, quando chegar o Libertador de Israel!... Vocês verão isso acontecer com seus próprios olhos!... Vocês verão e se alegrarão!

João continuou falando ao povo de todos os crimes e abusos daquele rei injusto. Mas havia ali no Jordão, entre as pessoas, partidários de Herodes, espiões seus. E aconteceu o que era de se esperar...

Herodes: Então ele disse tudo isso de mim? Que pena, teria gostado de ouvi-lo... Seja de que jeito for, gosto que falem de mim...

Servente: Ele também disse que... sss ... sss ...

Herodes: Como...? Insolente!

Servente: E que o senhor não pode viver com ... sss ... sss...

Herodes: Mas como esse cabeludo se atreveu a dizer isso...?! E diante de tanta gente!

Servente: A rainha está como se mil demônios a agarrassem...

Herodes: Este homem conspira contra o meu governo! É um perigo que ande solto!

Servente: Dizem que ele é um grande profeta, um enviado do Deus Altíssimo...

Herodes: Bah, besteiras! Os profetas já acabaram faz tempo... E se não acabaram, vão se acabar agora!... Tragam-me imediatamente esse João, filho de Zacarias!

Servente: E se o povo que está com ele resistir?...

Herodes: O povo!... Eu me rio do povo... O povo late muito e morde pouco... Que a tropa vá armada, em todo caso.

Servente: E quando devem sair, rei Herodes?

Herodes: Agora mesmo! O quanto antes! Já estou impaciente para ver a cara desse famoso profeta do deserto...

E assim foi. Herodes mandou prender João e o levou amarrado até o cárcere que tinha em seu palácio de Maqueronte. As pessoas que se amontoavam às margens do Jordão, que viram como o levaram, tentaram impedir, mas nada puderam contra os soldados de Herodes. As mulheres choravam desesperadamente e se lamentavam: uma vez mais os donos do poder e da força haviam calado o grito dos profetas.

Poucos dias depois, as margens do Jordão voltaram a ficar vazias e silenciosas, como estavam antes que a poderosa voz de João se aproximasse delas, para enchê-las de vida e esperança. Herodes mandou trancar João nos calabouços do palácio de Maqueronte. Nesses calabouços estreitos e escuros muitos outros presos consumiam sua vida em intermináveis condenações...

Herodes: Estava morrendo de vontade de ver essa sua cabeleira, João, filho de Zacarias...

Batista: Eu também tinha muita vontade de te ver, Herodes Antipas, filho do malvado Herodes o Grande.

Herodes: Para você ver como é a vida... Até ontem você era “o profeta”... agora não é mais que um rato na minha ratoeira... O que é que você anda dizendo de mim por aí, hein?... Responde.

Batista: Disse o que todo mundo já sabe. Que você é um rei injusto e que Deus botará abaixo o seu trono. E disse também o que você anda fazendo ultimamente: vivendo com sua cunhada, a mulher de seu irmão Felipe!

Herodes: Herodíades é minha mulher!!

Batista: Herodíades, que é tão sem-vergonha quanto você, é a mulher de Felipe! Você roubou de seu irmão essa mulher! Devolve-a!

Herodes: Mas você, como se atreve a falar-me assim?...

Batista: Como você se atreve a brincar com as leis de Deus?

O rei Herodes começou a morder as unhas. Estava muito nervoso. Os olhos de fogo do profeta João o assustavam...

Herodes: João... Profeta João... Quem é você...? Quem o ensinou a falar assim ao povo...? É você...? É você o Messias?... Fala! Não fique mudo!...

Batista: Eu não sou o Messias. Eu anuncio o Libertador de Israel. Ele já vem. E quando chegar, lhe arrancará a coroa e o deixará de cueiros diante do povo, e lhe jogará na cara suas injustiças e seus vícios!

Herodes: E onde está esse Messias...? Quem é esse Libertador de Israel? ... Quero conhecê-lo!

Batista: Você não o verá! Seus olhos estão sujos demais para vê-lo.

Herodes: Farei com que lhe arranquem a língua e a joguem aos cães!

Batista: Você é que está com medo, Herodes. Os abusos que cometeu contra esse povo pesam sobre suas costas. E você tem medo. Sabe que Deus não vai ficar calado diante de todos os seus crimes.

Herodes: Eu não tenho medo! Eu não tenho medo! De quem vou ter medo? De você, que é um charlatão embusteiro?

Batista: Você tem medo da verdade!

Herodes: Não, não, meus soldados me defendem! Tenho exércitos, tenho palácio, tenho poder! Agora tenho também um profeta! rá, rá, rá! Por que não me diz nada?

Batista: Já lhe disse tudo. Devolve Herodíades a seu irmão Felipe. E então falaremos.

Herodes: Herodíades é minha mulher! Eu quero Herodíades! Quero Herodíades! É minha!

Batista: Não é sua. Você não tem o direito de viver com a mulher de seu irmão!

Herodes: Nem você tem o direito de levantar a voz contra mim!... Diante de quem você pensa que está? Eu sou o rei da Galiléia e você tem de me respeitar!

Batista: Respeitar você...? Você?... Agora sou eu quem dá risada... Um homem repleto de todos os vícios, que subiu ao trono à custa de intrigas e subornos e que mantém seu governo sobre um charco de sangue... Você vem me falar de respeito...?

Herodes: Eu sou a autoridade! Você tem de me obedecer!

Batista: A única autoridade a quem eu obedeço está no Céu. Você foi parido de uma mulher como todo mundo. Nasceu nu, como todos. E os mesmos vermes que comem a todos, comerão você também.

Herodes: Cale-se já! Cale-se!...

Batista: Meu único rei é de lá de cima! Ele é o único a quem obedeço!

Herodes: João... Você não gostaria de sair daqui e... e voltar a falar ao povo? Podemos chegar a um acordo. Não quer voltar ao Jordão e continuar se fazendo de profeta...? Você sabe que está em minhas mãos. Se quiser, posso deixá-lo livre!

Batista: Não, Herodes. Você se engana! Não estou em suas mãos. Estou nas mãos de Deus! As suas estão vazias... manchadas e vazias. E logo estarão amarradas. Seu poder se acaba, Herodes. Vem aí o Libertador de Israel e seu poder se acaba...

Herodes: Dê-me outro copo de vinho, Herodíades...

Herodíades: Você está bebendo muito hoje, Herodes... Está acontecendo alguma coisa?

Herodes: Nada. Nada. O que pode estar acontecendo comigo?...

Herodíades: Eu o conheço muito bem... A mim você não engana... Você anda é preocupado com esse profeta João que está preso lá no calabouço...

Herodes: Não me fale de profetas... Você não sabe nada disso... Os profetas são sagrados.

Herodíades: Rá! Sagrados! O que se deve fazer com esses tipos é cortar-lhes o pescoço com um só golpe!...Por que você não faz isso, Herodes? Por que não corta o pescoço desse João?

Herodes: Cale-se!

Herodíades: Se gostasse de mim você faria isso... Mas você não me quer... Já não o agrado mais?

Herodes: Me agrada muito, Herodíades... gosto muito de você... hummmm!

Herodíades: Você tem medo dele? Não precisa ter medo... No dia em que cortar o pescoço desse homem, você voltará a ser o mesmo de antes... Um rei poderoso e forte que não tem inimigos porque os tira todos da frente...

O rei Herodes queria matar João, tirar, eliminar aquela voz que se tornara tão incômoda. Mas tinha medo do povo, porque todos em Israel sabiam que João era um profeta que falava da parte de Deus.

Comentários
Nos Evangelhos se fala de dois Herodes, Herodes o Grande que, aliado com os romanos, governou tiranicamente o país desde o ano 37 antes de Jesus, e a quem se atribui a matança dos inocentes. À sua morte, quatro anos depois do nascimento de Jesus, o país se dividiu entre seus filhos. Herodes Antipas, o mais novo, foi contemporâneo de João Batista e de Jesus.

Herodes Antipas foi posto como governador da província do norte de Israel, Galiléia, e também da zona de Peréia, na margem oriental do Jordão. O título que lhe deram foi de “tetrarca”, mas o povo o chamava comumente de “rei Herodes”. Embora estivesse casado com uma princesa árabe, Herodes Antipas se tornou amante de Herodíades, esposa de seu irmão Felipe. Essas relações chegaram até a provocar uma guerra na qual morreram muitos inocentes. Mas o rei era um homem ambicioso e sem nenhum escrúpulo. Os dados históricos que se tem dele o descrevem como um esbanjador, cruel com todos os que se lhe opunham - e eram muitos - e supersticioso. Era também um colaboracionista dos romanos, donos do país, que o mantinham no trono em troca de uma grande soma de dinheiro: em nome dos romanos, Herodes Antipas cobrava os impostos do povo, no território da Galiléia e da Peréia.

Entre as muitas denúncias que João Batista fez da corrupção do sistema de seu tempo, está a que foi dirigida contra Herodes Antipas, a quem acusava publicamente de viver em adultério com sua cunhada. A denúncia de João não era um simples “moralismo”: o adultério do rei era como o último fruto de uma árvore totalmente podre. O reino de Herodes estava corrompido pelas injustiças, pelo desperdício, o roubo, os crimes... não existia a menor moral política e social. Era isso que João condenava aos gritos.

Herodes, que cumpria com as normas religiosas judaicas, se transferia para as festas a seus palácios de Maqueronte e Jerusalém, para poder ir ao Templo e, ali, rezar e cumprir a Lei. Foi numa dessas ocasiões que mandou prender João. Herodes temia o movimento popular que o profeta estava desencadeando e desejava vingar-se de João que não cessava de acusá-lo diante do povo. Maqueronte era uma fortaleza construída à margem oriental do Mar Morto, na Região da Peréia. Herodes o Grande a fortificou amplamente e a enriqueceu com um magnífico palácio uns vinte anos antes de Jesus nascer.

Seu filho, Herodes Antipas, celebrava ali grandes festas. Nos calabouços daquela fortaleza esteve preso João Batista e ali foi assassinado pelo rei. No ano 70, a fortaleza foi destruída pelos exércitos romanos. Hoje só se conservam ruínas.

Herodes teme João, mesmo preso, porque o profeta, com grande liberdade, sem medo de morrer, o enfrenta e lhe joga na cara suas injustiças.

(Mateus 14; Marcos 6,14-20; Lucas 9,7-9)

sábado, 11 de agosto de 2012

Um tal Jesus - Capítulo 9: Sob o sol do deserto


Depois de ser batizado por João Batista no rio Jordão, Jesus vai para o deserto para orar. Em sua reflexão, Ele buscava saber o Deus queria Dele. Vou tentado e resistiu. Este é oitavo capítulo da novela sobre o contexto histórico e a trajetória de Jesus.

Sob o sol do deserto

Naquela manhã, bem cedo, vi Jesus sair da tenda onde nós, galileus, dormíamos; tomou seu bastão e se pôs a andar sozinho, afastando-se do rio, em direção ao deserto de Judá. Em pouco tempo, desapareceu num redemoinho de areia...

Jesus: O que queres, Senhor?... Que esperas de mim?... O que me pedes?... Fala-me claramente para que eu possa vencer o medo e responder-te!... Fala-me, Senhor!...

Porém, eram outras as vozes que escutava em seu interior...

Voz de Maria: O que é que você quer, Jesus? Passa um ano, passa outro e você não se decide por nada. Preste atenção no que lhe digo: esquece os sonhos e seja realista. Você tem trinta anos. Já é hora de pôr os pés no chão...
Voz do Taberneiro: Ah, que homens mais malucos! Sonhando com profetas e sinais de Deus, podendo ficar por aqui e aproveitar a vida! Você, nazareno, não se anima? Tenho um vinho muito bom e mulheres que estão... hum!... Lá no seu povoado não tem nada disso...
Voz de Pedro: Estou falando sério, Jesus... Todos nós podemos ser o Messias. Por que não? João não disse que ele está entre nós? Pois então, ele pode ser este careca, ou aquele magricela ou... ou você mesmo, Jesus. Você mesmo pode ser o Libertador de Israel!... Você mesmo pode ser o Libertador de Israel!...

Jesus caminhou e caminhou através do deserto. Subia e descia as colinas, circundava as grandes montanhas e, quando chegava a noite, caía na areia, com o rosto voltado para o céu, como que esperando uma resposta...

Jesus: Que queres de mim, Senhor?... O que posso fazer pelo meu povo?... João é um profeta, sabe falar... mas eu...

Quantos dias se passaram?... Para que lado ficava o povoado mais próximo?... A fome e a sede foram se apoderando dele. Nada, nem uma erva, nem uma gota de água se via em qualquer parte... Jesus, com os olhos secos e arroxeados, sentou-se sobre uma pedra. O sol fervia sobre sua cabeça e sentiu uma tontura. Depois não se lembrou de mais nada. Rolou sobre a areia e se perdeu num profundo sono...

Tentador: Pshss!... Pshss!... Pobre rapaz! Quem será esse que teve a coragem de vir para o deserto assim, sem comida e sem camelo? No deserto só vivem escaravelhos e lagartos...
Jesus: Quem é você?
Tentador: O que isso importa?... Digamos que eu sou um sonho...
Jesus: Bah!, então você não me serve para nada.
Tentador: Não creia nisso. Às vezes os sonhos são mais reais que a própria realidade... Pobre rapaz. Está tonto de fome e de cansaço... Eu o ajudarei. Mas primeiro você tem de me falar francamente: o que você veio procurar aqui?
Jesus: Procuro Deus. Preciso que Deus me fale e me mostre o caminho que devo seguir.
Tentador: No deserto não há muitos caminhos. E na vida muito menos. Qualquer um faz seu caminho com um pouco de sorte e outro pouco de ambição. Eu posso ajudá-lo, Jesus de Nazaré.
Jesus: Como você sabe meu nome?
Tentador: Por aqui passam tão poucos visitantes que qualquer um logo fica sabendo quem é quem...
Jesus: E você, como se chama?
Tentador: Não se preocupe com isso... Escute: posso lhe dar um bom conselho. Escute-me: você nunca ouviu dizer que os gatos têm sete vidas e os crocodilos quatro? E você, você que é um pobre homem, quantas vidas você tem, infeliz?
Jesus: Uma... uma só, suponho.
Tentador: Pois desfrute essa vida, amigo!... Você não andava procurando um caminho? Esse é o caminho que segue a maioria dos homens e das mulheres e... e eles acham muito bom.
Jesus: Que devo fazer para desfrutar a vida?
Tentador: Primeiro, não pensar muito. O pensamento é a mãe da tristeza.
Jesus: Isso é fácil de falar, mas... e nosso povo? E tantas injustiças que é preciso reparar? Como posso deixar de pensar nessas coisas?
Tentador: Bah, idealismos de juventude. O mundo continuará igual, com você ou sem você. Passarão dois mil anos e os pobres continuarão pobres, e os ricos, ricos. E os abusos que se cometeram ontem, se repetirão amanhã.
Jesus: Talvez você tenha razão, mas...

Tentador: Escute-me, Jesus de Nazaré. Olhe essas pedras... Imagine que essa pedra fosse um pão, um saboroso pão recém saído do forno... Ah, meu bom amigo: comer é a primeira regra para desfrutar a vida.
Jesus: Mas não só de pão vive o homem...
Tentador: Claro que não! Boa comida para o estômago, bom vinho para a garganta e, boas mulheres para a cama!
Jesus: E a palavra de Deus? O homem também vive da palavra de Deus.
Tentador: Uff!, esqueça-se de Deus. Ele tem seus problemas lá no céu e você tem os seus aqui na terra. Sabe o que você precisa? Dinheiro!... O dinheiro, amigo, é a chave da felicidade. Com dinheiro você pode comprar tudo. Preste atenção: consiga dinheiro, muito dinheiro e você terá uma vida cômoda e feliz.
Jesus: Mas, onde vou encontrar esse tesouro de moedas? Não é fácil chegar a ser rico.
Tentador: Pra você é. Você leva jeito para os negócios. Estou certo de que se você se mudar para Jerusalém e começar, por exemplo, com uma pequena casa de empréstimos... ou um comércio de púrpura... você progredirá, rapaz. Você poderá transformar pedras em pão! e o pão em dinheiro! e o dinheiro em tudo o que quiser! Desfrute a vida e não pense!...Vamos, decida-se... O que você está esperando?
Jesus: Não sei, mas... Eu procuro outra coisa... Dinheiro, luxos, segurança... E depois?
Tentador: Eu já imaginava isso, rapaz. Você não é como todo mundo que se conforma em fazer o que todos fazem. Todos querem dinheiro. Todos querem gozar a vida. Você quer algo mais!... Você quer dominar a vida! Conduzir você o leme do barco, não é isso?
Jesus: Não estou entendendo.
Tentador: Venha, dê-me a mão e me acompanhe...
Jesus: Para onde está me levando?
Tentador: Olhe, observe daqui desta montanha. Daqui você pode escolher bem. Olhe todos os reinos e os governos desse mundo: Jerusalém, Egito, Babilônia... Atenas... Roma... De qual você gosta mais? Qual você prefere?
Jesus: Mas, do que é que você está falando?
Tentador: Que se você quiser, poderá chegar a ser o dono de qualquer um desses impérios... Ou, se for mais ambicioso, como Alexandre o Grande, de todos juntos.
Jesus: Mas isso é impossível. Eu... eu sou um camponês de sandálias gastas...Não tenho nem quatro palmos de terra que sejam meus e você me fala de ser dono de...
Tentador: Tudo é questão de se propor. Pouco a pouco, você irá subindo na escala do poder. Convença-se, rapaz: a política é a arte de pisar na cabeça de quem está no degrau debaixo.
Jesus: Precisamente, esse é que sou eu: estou no degrau mais baixo. Em quem posso pisar? O que teria de fazer para ir subindo?
Tentador: Eu o ajudarei. Confie em mim.
Jesus: Mas, quem é você? Diga, por favor.
Tentador: Eu sou a ambição de poder que você leva escondida em sua alma, Jesus. Você não se conforma com dinheiro e luxo porque você quer governar e ter poder sobre os outros homens. E é natural. Já lhe disse que homens como você não se contentam só em desfrutar a vida. Querem ter as rédeas nas mãos... Olhe!... Aquele vai armar uma guerra com seu vizinho. E ganhará, não duvide, porque é ambicioso. Ele já tem centenas de milhares debaixo de seus pés e de seu chicote. E terá muitos mais. Todos o obedecem. Todos estão a seu serviço.
Jesus: Não sei, mas... eu prefiro servir e não ser servido.
Tentador: Você é um sonhador, Jesus. Vamos ver: diga-me, a quem você quer servir?
Jesus: Não sei... servir a Deus... servir a meu povo Israel...
Tentador: Ah, estou entendendo, como não pensei nisso antes?!... Sua soberba é maior do que eu suspeitava. Falemos francamente, Jesus de Nazaré: você quer ser o Messias que todos os judeus esperam desde muitos séculos... Sim, não precisa fazer essa cara... Você sabe muito bem do que estou falando. O dinheiro é vulgar. O poder também é aborrecido, reconheço. Você quer algo especial. Você quer ser o Messias de Israel, o Salvador do Mundo. Que falem de você pelos séculos dos séculos, que se escrevam bibliotecas inteiras contando suas palavras, ter muitos seguidores, uma organização poderosa, com dinheiro e com influência, é lógico...
Jesus: Como você pode falar assim? Eu nunca pensei nada disso...
Tentador: Venha, o que está faltando para começar sua carreira é um bom golpe de efeito, entende?... Vamos a Jerusalém, ao templo, no ponto mais alto das muralhas...
Jesus: Deixe-me, não quero ir... deixe-me!...
Tentador: Olhe... 400 côvados de altura!... Olhe lá pra baixo... Veja esse rebanho humano... Todos se reuniram para ver o milagre.
Jesus: Que milagre?
Tentador: O seu! Feche os olhos e jogue-se daqui de cima!...
Jesus: Você está louco! Eu me mataria!
Tentador: Nada disso! Eu estarei lá em baixo e não permitirei que seus pés sequer esbarrem numa pedra. Confie em mim.
Jesus: Mas, o que é que eu ganho com isso?
Tentador: Este será o primeiro milagre. Logo virão outros maiores. As pessoas o aplaudirão. E você dirá: a quem procuram?  O Messias Libertador? Sou eu! E todos se ajoelharão diante de você e você será grande, sua fama encherá o mundo!
Jesus: Mas...
Tentador: Nada de mas. Pare de pensar. Não está ouvindo as pessoas que o esperam?
Tentador: Vamos, atire-se já desta muralha! Eu cuidarei do resto!
Jesus: Espere... não sei... isto é tentar a Deus. Não se deve tentar a Deus.
Tentador: Deus! Deus! Deixe Deus tranqüilo, imbecil!
Jesus: Deixe-me você tranqüilo também! Vai embora!... Vai embora!...
Tentador: Que pena você me dá, Jesus de Nazaré. Você está indo por um mau caminho, rapaz. Está bem, cabeça dura. Você vai se arrepender por não ter me ouvido. Voltaremos a nos encontrar. Até mais ver!
Jesus: Espere, diga-me quem é você... Quem é você?... Como se chama?...
Cameleiro: Eu me chamo Nasim. Sou samaritano e faço esta rota do deserto para ir até Jericó...

Um velho cameleiro passava por aquele lugar e, ao ver Jesus estirado na areia, se aproximou para ajudá-lo...

Cameleiro: Como você se chama, heim?... Perdeu seu camelo?... Os bandidos o assaltaram?... Ai, irmão este deserto é traiçoeiro... Até os demônios tremem quando têm de atravessá-lo. Você estava gritando muito... eu cheguei perto para ver o que acontecia... Venha, suba... uff!, agora sim... Você está meio morto, irmão... ande, beba este leite de cabra... vamos que ainda nos falta um bom pedaço até Jericó... Eia, camelo, vamos cameloooo!...

Quantos dias esteve Jesus naquelas montanhas cinzentas e peladas? Não podia saber. No deserto, durante quarenta anos, Deus pôs à prova seu povo e permitiu que fosse tentado. Também o profeta Elias atravessou o deserto e durante quarenta dias e quarenta noites buscou o rosto de Deus. E João o Batista havia aprendido a gritar naquelas solidões que o Libertador de Israel já se aproximava.



Comentários:

Assim como a Galiléia, a região norte de Israel, é fértil e sempre verde, a Judéia, a região sul, é zona seca, de escassa vegetação e, em alguns lugares, de autêntico deserto. Nessas terras desabitadas, às quais Jesus se dirige, não cresce mais que espinhos e abrolhos. Quase não chove e só passam caravanas de camelos. Na atualidade, pode-se ver, perto da cidade de Jericó, em pleno deserto da Judéia, o chamado Monte das Tentações, onde a tradição cristã fixou desde muitos séculos, o lugar onde Jesus havia sido tentado. Na encosta desse monte, vivem alguns monges ortodoxos num velho mosteiro. O povo de Israel acreditava que o deserto era terreno amaldiçoado por Deus e, por isso, era estéril. Ali só podiam viver animais selvagens e demônios. Tudo isso fazia com que o deserto fosse considerado um lugar extremamente perigoso, onde o homem era posto à prova e podia sucumbir à tentação.

Mas o deserto não era unicamente um lugar terrível. A longa peregrinação dos israelitas pelo deserto ao longo de quarenta anos até chegar à terra prometida, fez com que a tradição de Israel o considerasse também como lugar privilegiado para se encontrar com Deus e para conhecer melhor seus planos na solidão e no risco. Entre esses dois sentidos, de enfrentamento com o mal e de revelação de Deus, é que se move o texto das tentações de Jesus que os evangelistas nos oferecem.

O relato evangélico das tentações não deve ser lido como uma narração histórica, mas como um resumo teológico dos desafios que Jesus, como Servo de Iahweh, teve de superar ao longo de toda sua vida para ser fiel até o fim: a tentação da segurança, da vida sem risco,  do buscar o próprio proveito; tentação do poder-dinheiro com o qual se pode subjugar os demais; a tentação de um Messias que busca ser servido em vez de servir. Jesus, como todo homem que leva a sério um compromisso, teve de experimentar fraquezas e teve de escolher em muitas ocasiões o caminho da generosidade. Renovou continuamente sua própria vocação. E, ao fazê-lo, superou uma tentação que os evangelhos nos contam esquematicamente em três momentos.

A chave para entender o relato das tentações está nas três frases com que Jesus responde ao Tentador. As três aparecem na narração da peregrinação do povo hebreu pelo deserto (Dt 8,3; 6,16; 6,13). O que Deus pediu a seu povo em marcha pelo deserto para comprovar sua fidelidade, se renova em Jesus. Jesus suporta as mesmas tentações que há séculos o povo havia suportado. Nesse tempo Israel falhou com Deus, caiu na tentação da desconfiança, da acumulação e da prepotência. Jesus, porém, se manteve fiel. Na sua história pessoal, se resgata e chega à plenitude a história coletiva de seu povo.

A cultura e o estilo literário do tempo de Jesus obrigavam a usar nesses relatos a figura de um Tentador exterior à pessoa tentada. Assim, aparece o demônio como interlocutor de Jesus. A Bíblia menciona freqüentemente o demônio sob diversos nomes: O Adversário, Lúcifer, Satanás, Belzebu etc... É preciso ter um grande cuidado e saber descobrir em cada ocasião o que quer dizer o relator ao recorrer a este personagem.

(Mateus, 4,1-11; Marcos 1,12-13; Lucas 4,1-13)

sábado, 4 de agosto de 2012

Um tal Jesus – Capítulo 8: A última noite em Betabara

Todos temos, ou deveríamos ter, um projeto de vida. Devemos pensar o que queremos ser e o que devemos fazer hoje para atingirmos a "meta" projetada. Esta "meta" pode ser reavaliada e alterada no decorrer de nossas vidas, na medida em que vamos vivendo nosso "projeto". Fatos marcantes ou pessoas importantes que entram em nossas vidas podem nos ajudar a pensar e fazer com revisemos nossos projetos. Será que João Batista contribuiu com o projeto de vida de Jesus?


A última noite em Betabara

André e Pedro, Tiago e eu, Felipe, Natanael e Jesus havíamos sido batizados pelo profeta João. Já nos sentíamos preparados para a chegada do Libertador de Israel. E tínhamos também de regressar à nossa província. Eu lembro que naquela noite, a última que passamos na curva de Betabara, nos reunimos em uma tenda para nos despedir...

Pedro: Esta jarra vai em honra de Felipe, que já fazia três anos que não molhava os cabelos!
Felipe: Pois a minha vai em honra do meu amigo Nata, que com o mergulho que deu, seu cabelo está crescendo de novo!
Natanael: Deixe-me em paz, Felipe, não seja aborrecido...
Tiago: Falando sério, companheiros, vocês repararam como está o profeta João?... Desassossegado, dando voltas de um lado pra outro, como um sabujo quando fareja a presa mas não sabe de onde vem?
João: É verdade. O profeta está esquisito desde ontem. Tem os olhos apertados como que querendo enxergar algo que se aproxima, mas é alguma coisa que a gente não consegue adivinhar.
Tiago: Alguma coisa não, Alguém! Dizem que ele falou que o Messias já está pisando em nossos calcanhares.
Natanael: Isso ele sempre falou, só que até agora ninguém mostrou a cara.
Felipe: Não será ele mesmo o Messias? Vamos ver, me digam, quem nesse país tem um gogó mais duro que o batizador para dizer as verdades na cara de qualquer um? Para mim, João é o homem.
Pedro: Eu acho que não, pra mim é alguém mais forte que ele. No entanto está calado, mas quando abrir a boca fará tremer até a deusa Lilit!
João: Aqui o único calado é o nazareno. E aí, Jesus, o que acontece com você? Venha pra cá, homem...
Jesus: Acontece que eu tenho de sair para dar um recado a um patrício que me espera... Vamos lá, continuem festejando, que eu volto daqui a pouco.
Felipe: Não se demore, o magricela do André já foi buscar mais vinho...

O patrício a quem Jesus queria ver naquela noite era o profeta João. Jesus sabia onde ele dormia: no buraco de um penhasco que caía a pique sobre o rio. E foi até lá para conversar com ele...

Batista: Pois é assim, Jesus. Somos primos distantes. Minha mãe sempre recordava da sua com muito carinho e me falava de quando esteve um par de meses com ela, lá em Ain Karem, quando eu estava pra nascer... Ah, caramba, como o tempo passa! Logo eu saí de casa e não voltei a saber dos meus. Fui ao mosteiro dos essênios, não sei se você conhece...
Jesus: Não, nunca estive por lá...
Batista: Não fica longe daqui. Pois veja, estava no mosteiro quando me avisaram da morte do meu pai Zacarias. Ele nunca esteve de acordo que eu fosse pra lá... Claro, era sacerdote e você sabe que o pessoal do Templo está brigado de morte com os essênios do deserto.
Jesus: E sua mãe Isabel?
Batista: Morreu no ano seguinte. José e Maria puderam nos acompanhar no enterro. Você já devia ser um garotão, não?
Jesus: Sim, eu me lembro que fiquei em Nazaré cuidando da casa e foi nesse tempo que se armou aquela confusão em Séforis. A cidade queimada, não sei quantos crucificados... Coisa espantosa.
Batista: E então foi quando morreu seu pai José, não foi?
Jesus: Não, isso foi uns anos depois. Em Séforis sempre havia problemas e como nós vivíamos tão perto... Ele foi delatado por ajudar alguns que escaparam de lá. Bateram tanto nele que... bem, depois disso durou muito pouco. Um crime.
Batista: É, esses romanos são cruéis... É bom ter medo deles...
Jesus: Mas você não tem tanto medo deles assim. Você lhes grita na cara tudo o que tem vontade.
Batista: E por que vou ter medo deles? O que eles podem me tirar? Nada. Não tenho nada a perder. Não tenho dinheiro, nem casa, nem família. Não deixo nada pra trás. Olhe a única coisa que me podem tirar:  esta voz. Mas o que queria dizer já disse... Bah, vamos falar de você. Fale-me de sua vida. O que você faz? Ou melhor, o que você quer fazer?
Jesus: Era justamente para isso que eu queria falar com você, João. Me dê uma mãozinha. Estou desorientado.
Batista: Não sabe o que fazer. Sente que Deus fica dando voltas em torno de sua cabeça como um mosquito, nem o pica, nem o deixa tranqüilo, não é isso?
Jesus: É, algo assim. Faz vários meses que estou inquieto. Agora, vejo você e penso: caramba, este João está batendo no cravo. Está abrindo os olhos do povo, está ajudando as pessoas, fazendo alguma coisa... mas eu, o que é que eu faço?
Batista: Muito bem. Você quer trabalhar? Fique aqui comigo. Ajude-me a batizar. Como você viu há trabalho para dois e para duzentos. Chegam muitas caravanas, cada dia mais, e qualquer um fica rouco de tanto falar e gritar. Vou lhe dizer, estou cansado. Fique comigo, Jesus. Parece-me que você leva jeito de pregador, não é mesmo?
Jesus: Pregador, eu? Não, não, nem me fale nisso. Deixe-me em Nazaré com as minhas ferraduras e meus tijolos. Eu não sirvo para falar com as pessoas.
Batista: Moisés era meio gago e Jeremias um menino quando Deus os chamou. Diziam a mesma coisa que você. Eu também tremia quando abri a boca pela primeira vez... E agora tanto faz ter à minha frente mil ou dez mil. Vamos lá, homem, decida-se. Fique aqui, a gente se arranja pra viver.
Jesus: É que... tenho muito trabalho pendente em Nazaré... e eu...
Batista: Está bem. Não quer ser pregador, as pessoas o assustam. Pois então vai pro mosteiro. Sim, passei lá mais de dez anos. Vê aquelas rochas lá no fundo... aqueles montes?... Atrás deles está o Mar Morto. Os peixes arrastados pela corrente do Jordão morrem ao chegar em suas águas salgadas. É um lugar sem animais, sem árvores... Ali é que fica o mosteiro. Longe do mundo e perto de Deus.
Jesus: E quem disse que para estar perto de Deus tem de estar longe do mundo?
Batista: Isso dizem os monges do deserto. Por isso se escondem no mosteiro.
Jesus: E por isso você escapou de lá, porque queria estar com o povo.
Batista: É, você tem razão. Deus e o povo me cabem juntos aqui dentro. Não tenho que tirar um pra dar lugar ao outro.
Jesus: Não me fale então de monges nem de solidão. Eu não quero me afastar das pessoas. Gosto muito de ter amigos, gosto de festa, gosto da vida. Deus não está em tudo isso, na alegria?...
Batista: Eu creio que sim, Jesus.
Jesus: E então?
Batista: Então digo eu. O que mais você quer? Case-se, leve bem sua família, tenha muitos filhos para ver se algum deles é o Messias, e viva seus anos em paz.
Jesus: É, isso é o que minha mãe sempre me diz, mas não sei, não vejo claro...
Batista: Você não quer ir com os monges para o deserto. Não quer levar uma vida normal como a maioria das pessoas. Tampouco quer ficar aqui comigo que tenho um pé com o povo e o outro no deserto... O que você quer então? Pois lute. Junte-se à guerrilha dos zelotas. Na Galiléia os grupos estão bem organizados.
Jesus: Sim, mas... Não sei, do jeito que as coisas estão, com a força tão grande que os romanos têm, não será uma loucura empunhar uma espada contra eles? Que preço de sangue haveria que se pagar, diga-me?
Batista: Eu o compreendo. Eu também me faço essas perguntas...
Jesus: E então?
Batista: Então você também não vai com os zelotas.
Jesus: Ajude-me, João, estou desorientado. Não quero ser mesquinho com Deus. Mas que ele também não seja mesquinho comigo. Que será que ele quer de mim?
Batista: Pois faça o que fizeram todos os que buscaram Deus: vai para o deserto, vai por essas montanhas de areia e lá, entre o céu e a terra, grite, grite a Deus. E ele lhe responderá.
Jesus: No deserto também se escuta outras vozes, não só a de Deus. Ouve-se a voz da tentação.
Batista: Sim, você também a ouvirá. Mas o Espírito lhe falará mais forte. O Espírito de Deus estará sobre você e... Jesus, quem é você?
Jesus: O que você disse, João?
Batista: Não, perdoe-me, por um momento me pareceu... Foi você, não é verdade, foi você o nazareno que eu batizei esta manhã?
Jesus: Claro que sim, João... O que acontece?
Batista: Nada, não faça caso disso... Às vezes, de noite, passo o tempo imaginando como será o rosto do Messias... Será ruivo ou moreno? E sua barba, rala ou bem cerrada?... E seus olhos, como olharão? Como me olharão quando eu os olhar?... Fico tanto tempo esperando esse momento, que às vezes me parece que não chegará nunca. Morrerei sem vê-lo.
Jesus: Não diga isso, João. Você está cansado, é isso que acontece. Bem, vou voltar à barraca com os companheiros. Seguirei seu conselho. Amanhã irei ao deserto... Será que voltaremos a nos ver algum dia?
Batista: Espero que sim. Dê lembranças minhas à sua mãe Maria quando a vir. Boa sorte, Jesus, e seja valente!
Jesus: Obrigado, João. Adeus!

Jesus voltou um pouco tarde para a barraca onde estávamos todos reunidos, rindo, jogando dados e, sobretudo, bebendo vinho a cântaros...

João: Até que enfim chegou quem faltava!... Venha, Jesus, conte umas piadas boas pra gente!...
Felipe: Nós estamos aqui celebrando a vinda do Messias... Hip! e neste momento chega você... Hip! pois então você será o nosso Messias! Hip!...
Jesus: Quantos litros de vinho ainda faltam para embriagar uma cabeça tão grande, hein, Felipe!?...
Pedro:  Pois se eu fosse o Messias... metia todos os romanos numa rede, com suas capas e seus escudos, os amarrava bem, os levava pro meio do lago e, zaz! comida para os peixes!...
Tiago: Você não serve pra Messias, Pedro. Se eu fosse o Messias o que eu faria era mudar a capital para a nossa província, o que vocês acham?! Pegava quinhentos elefantes e arrastava o templo de Jerusalém e o plantava ali na Galiléia. Ali ele seria mais bem cuidado do que aqui no sul...
Pedro: E você, Jesus, o que faria se fosse o Messias?
Jesus: Deixe de lorota, Pedro...
Pedro: Não estou gozando, não. Falo sério, Jesus... Todos nós podemos ser o Messias. Vamos ver, por que não? João não disse que ele está entre nós? Pode ser este careca, ou aquele magricela ou... você mesmo, Jesus. Isso é coisa de Deus. Se Deus diz: “este”, é este. Se Deus diz: “aquele”, é aquele. Qualquer um pode ser o Messias. Você mesmo pode ser o Libertador de Israel, Jesus...!
João: Yupi! Amanhã vou me mandar pra Galiléia pra dançar com a mais feia, lá, lá, lá...
Natanael: Um brinde, porque amanhã volto pra minha oficina!... Ai, Jesus, meu irmãozinho, como estou contente... Muá!
Tiago: Jesus, decidimos voltar amanhã para a Galiléia.
Jesus: Para mim está tudo bem! Eu... eu irei um pouco mais tarde.
João: Você não vem com a gente amanhã?
Jesus: Sabe o que é, eu tenho que ir primeiro a Jericó...
Pedro: Bah, não seja por isso, eu vou com você a Jericó e depois nos reunimos com esses bandidos pelo caminho...
Jesus: Não, Pedro, quer dizer... não é a Jericó exatamente. É... ao deserto.
Pedro: Ao deserto? Pra fazer o que? E você pensa em ir sozinho ao deserto?
Jesus: Sim.
Pedro: Mas ... você está maluco?
Jesus: Bem, um pouco sim.
Felipe: Pois eu brindo a este moreno maluco e a todos os doidos que estão aqui!!

Bem, para dizer a verdade, tínhamos muito vinho na cabeça..., e não me lembro de mais nada do que aconteceu naquela noite, a última de Betabara.

Comentários:

A figura de João Batista teve um grande impacto entre os que o escutaram e ainda entre os que o conheceram por notícias que dele chegaram em todos os cantos do país. Deve ter tido influência decisiva sobre Jesus que, um dia diria que João era o maior dentre os nascidos de mulher (Mt 11,11). No calor do movimento que o Batista gerou, Jesus descobriu sua vocação e, à morte de João, tomará o relevante de sua palavra profética.

O parentesco entre João e Jesus, a que se refere unicamente o evangelho de Lucas, deve ser entendido principalmente como uma forma de expressar a estreita relação que houve entre a mensagem do profeta precursor e a de Jesus.

É muito possível que João Batista, tenha vivido algum tempo no mosteiro dos essênios, na orla do Mar Morto, perto do lugar onde mais tarde batizaria o povo. Os essênios eram como uma congregação religiosa que começou a formar-se uns cento e trinta anos antes do nascimento de Jesus. Viviam em comunidade, guardavam o celibato - ainda que houvessem grupos de casados - rezavam orações especiais, não faziam sacrifícios de animais, praticavam uma pobreza rigorosa e compartilhavam os bens. Entre suas ocupações estava a de copiar as Escrituras sagradas. Alguns desses pergaminhos chegaram até nós depois das descobertas feitas em Qunram em 1947. São os manuscritos mais antigos que se conhece de alguns livros da Bíblia. O mais importante é o rolo do profeta Isaías. Atualmente, pode-se visitar as ruínas do mosteiro essênio, do qual se conservam paredes, algumas escadas, as piscinas de purificação etc. No Museu do Livro, em Jerusalém, estão muitos dos objetos encontrados nestas ruínas: vasilhas, sandálias, moedas, mesas etc. Os essênios viviam distantes do mundo para não se contaminarem e se consideravam perfeitos, os prediletos de Deus. Isto os fez orgulhosos e também intolerantes. Por este espírito elitista é de se supor que João tenha rompido com eles.

Neste capítulo, João Batista apresenta a Jesus vários caminhos para que se concretize seu desejo de serviço: vida monástica, vida de família, compromisso guerrilheiro. A todos esses caminhos, Jesus coloca inconvenientes. Não se vê em nenhum deles. Jesus não foi um monge, nem nada parecido. Viveu misturado com seus patrícios, participando de todos os seus problemas, de suas alegrias e de suas preocupações. Tampouco se casou nem se comprometeu com os zelotas, nem com outros grupos políticos de sua época. Foi um leigo, não entrou em nenhuma estrutura religiosa de seu tempo: não foi sacerdote, nem levita, nem tomou parte do movimento secular fariseu. Até o final de sua vida, viveu e atuou de forma independente, sem afastar-se da classe social em que havia nascido.

Neste episódio são apontados alguns dados sobre a morte de José, esposo de Maria. Não se tem nenhuma referência histórica sobre quando ou como José morreu. O que de verdade é histórico é que durante a juventude de Jesus ocorreu o saque e a destruição da cidade de Séforis, próxima a Nazaré e então capital da Galiléia. Os romanos a incendiaram como escarmento da rebelião zelota que ali se produziu.