sábado, 6 de agosto de 2016

UM CORAÇÃO EM DESEJO - Reflexão para o 19º Domingo do Tempo Comum*

* Padre Adroaldo

“Que vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas acesas” (Lc 12,35)

As insistentes recomendações que recebemos, ao iniciar uma viagem aérea, contém um tom de advertência séria: somos informados que vamos passar por um momento de certa gravidade e nos recordam que a decolagem e a aterrissagem são momentos de risco e de instabilidade; por isso é preciso preparar-se e dispor-se. O aviso “afivelem seus cintos de segurança” corresponde ao imperativo “tende os rins cingidos e as lâmpadas acesas”, proferido por Jesus no Evangelho deste domingo. Tal apelo equivale a mobilizar-nos para realizar um trabalho, uma viagem, uma missão...

As advertências são necessárias, porque facilmente nos fechamos ao nosso habitual modo de viver, caindo na acomodação e na falta de atenção àquilo que acontece ao nosso redor. Continuamente estamos diante do novo e do imprevisível e preferimos nos fixar no que é passado e já conhecido, pois nos dá a impressão de segurança. Com isso não avançamos e nem crescemos. Perdemos ricas oportunidades.

É inútil se esquivar da passagem do tempo e suas consequências, não escutar seus avisos e dissimular seus efeitos. Facilmente enterramos nossa cabeça na areia, evitando tomar consciência daquilo que pede de nós uma atitude, colocar-nos de pé e sair ao seu encontro bem cingidos.

O tempo exige decisão, pois o tempo é sempre novo e nos abre a novas possibilidades. Somos “seres de travessia” mas a tentação a permanecer na “margem conhecida” é contínua.

Em que consiste, então, “ajustar o cinto” e “cingir-se”? De imediato, consiste na decisão de assumir a frágil existência, habitá-la com sentido e começar a acolher as mudanças que a passagem do tempo vai introduzir nela. Gostemos ou não, estamos diante de uma etapa diferente das anteriores, na qual, junto a evidentes perdas, apresentam-se novas oportunidades. E dispomos também a assumi-la a partir de uma atitude de radical confiança em Deus, seguros de Sua presença e Sua companhia, em todo e qualquer tempo.

As palavras de Jesus são também hoje um chamado a viver com lucidez e responsabilidade, sem cair na passividade ou na letargia. Vivemos tempos densos, carregados de presença e que pedem de nós uma prontidão. Tempo para tomar consciência dos medos, receios e resistências despertados pela “travessia” da vida; tempo para tirar de dentro de nós aquelas amarras que impedem o fluir da vida.
Não é a hora de apagar as luzes e irmos dormir. É a hora de reagir, despertar nossa fé e seguir caminhando para o futuro, projetando e promovendo caminhos novos de fidelidade ao projeto de Jesus.
Como manter viva a esperança? Como não cair na frustração, no cansaço ou no desânimo?

Nos Evangelhos, encontramos diversas exortações, parábolas e chamados que só tem um objetivo: manter viva a responsabilidade do seguidor de Jesus. Uma das advertências mais conhecidas é a que encontramos no Evangelho deste domingo: “Tende cingido vossos rins e suas lâmpadas acesas”.

As duas imagens são muito expressivas. Indicam a atitude que os empregados devem ter quando, à noite, estão esperando que regresse seu senhor para abrir-lhe a porta da casa quando ele os chamar. Devem estar com a “cintura cingida”, ou seja, com a túnica presa à cintura para poder mover-se e atuar com agilidade; devem estar com as “lâmpadas acesas” para ter a casa iluminada e manter-se despertos.

A vida do seguidor de Jesus é um contínuo estar em alerta, estar sempre despertos, estar sempre em espera, estar sempre dispostos. Ele precisa viver com os olhos abertos às vindas surpresas de Deus; precisa estar com os ouvidos atentos para escutar seus passos; precisa viver sempre em prontidão para abrir a porta de seu coração.

As palavras de Jesus não contém nada de ameaça nem de cobrança; não alimentam um ego fechado nem sustentam nenhuma ideia de mérito. São palavras de sabedoria que convidam, ao contrário, a despertar para a Realidade que somos.

Despertar é uma das palavras básicas de todas as tradições de sabedoria. Todas elas nos alertam de que facilmente nos submergimos no sono da ignorância, crendo ser o que não somos e desconectados do que realmente somos; e esta é a fonte de muitos sofrimentos.

A condição humana pode ser definida em termos de “espera radical”  ou de “esperança”.

Porque nos definimos como radical espera, caímos na tristeza, quando vislumbramos um futuro ameaçador, ou nos entusiasmamos, pensando alcançar algo que nos agrada.

O filósofo Gabriel Marcel fez uma análise penetrante das atitudes humanas de esperança e desespero.

Esperar, para ele, é passar do “tempo fechado” para o “tempo aberto”, da superfície do “devir” para a profundidade do eterno, da fugacidade do “ter”  para a plenitude do “ser”.

A esperança, ao abrir-se para o futuro imprevisível, benfazejo e plenificante, cria o espaço vital que permite a realização daquilo que interiormente é desejado e buscado (“buscar e encontrar a Vontade divina”). Desesperar, pelo contrário, é fechar-se sobre si mesmo, enclausurar-se no tempo, que não faz mais que passar mecanicamente, sem trazer nada válido para a construção de algo novo. O futuro perde toda sua surpresa e mistério, feito mera repetição de experiências cristalizadas.

A espera tem, sem dúvida, um significado ativo; a espera não pode se separar da busca e do encontro, do atuar. Esperar é ousar re-nascer, vir-de-novo, re-começar... na fulgurante arte de tecer a vida naquilo que ela tem de mais íntimo e profundo. A espera, quando é carregada de amor e presença, faz crescer e conhecer regiões do coração até então desconhecidas e inexploradas.

Não mais confundir espera com impaciência. A dinâmica da espera inclui a surpresa. Esta certeza constitui o centro da experiência de fé. Por isso, a espera é sempre agradecida e confiada, uma autêntica sede de Deus. Brota uma certeza: o Esperado, quando chega, ultrapassa sempre o que se espera.

“Da aurora ao anoitecer, estou sentado à minha porta. Sei que, quando menos o penso, virá o feliz instante em que o verei. Enquanto isso, sorrio e canto sozinho; enquanto isso, o ar está se enchendo do aroma da promessa” (Tagore).

A esperança, neste início de século e de milênio, parece ser ainda mais urgente e necessária.

Os homens e mulheres deste tempo, carentes de certezas, parecem ter perdido a firmeza das antigas “verdades eternas”, rocha onde se alicerçava a esperança cristã.

A esperança é como uma “memória do futuro”; tem caráter profético. E, enquanto o anuncia, de certa forma, o prepara. Precisamente por vivermos tempos difíceis, precisamos mais do que nunca da pequena e teimosa esperança.

Pois “a esperança é uma filhinha que todas as manhãs acorda, lava- se e faz a sua oração com um rosto novo” (Péguy).

A esperança é a disponibilidade de alguém engajado numa experiência de comunhão, que oferece o penhor e as primícias do que se espera.

Nesta esperança nos alegramos, mesmo nas horas mais difíceis e escuras da nossa vida. Esta é a esperança que desejamos viver comunicar ao mundo; é a esperança que dá calor e sentido às nossas esperas.

Texto bíblico:  Lc 12, 32-48
Na oração:  O ser humano é um ser de “espera”.  

Nesta vida, todos nós esperamos algo que está sempre à nossa frente, além das nossas possibilidades atuais. O nosso coração está habitado por esperanças de todo gênero. O que nos diferencia é a qualidade, a consistência e o realismo das nossas esperanças.


- Em quê estou colocando a minha capacidade de esperar?

quarta-feira, 25 de maio de 2016

HUMILDADE: “andar na verdade”

Padre Adroaldo

“...não sou digno de que entres em minha casa;... mas ordena com a tua palavra, e o meu empregado ficará curado”  (Lc 7,6-7)

Neste belo relato do Evangelho de Lucas nos é apresentado, com simplicidade, a força e a intrepidez que se revelam numa pessoa de fé. Podemos imaginar o que significou para aquele centurião romano o gesto de ter que acudir a alguém do povo a quem dominava, buscando a cura de seu empregado. Teve de superar muitas barreiras e impedimentos e esvaziar-se de seu orgulho e amor próprio para realizar aquele gesto humilde de solicitar ajuda a um judeu.

Cultivar a humildade é uma das maiores e mais difíceis virtudes humanas. Ela está vinculada ao amor à verdade. "Ser humilde é amar a verdade mais que a si mesmo", escreve o filósofo Comte-Sponville. Em outras palavras, é assumir tudo o que a pessoa é, reconhecer-se diante de Deus e dos outros, ativando seus recursos e capacidades e acolhendo suas limitações, sua fragilidade e seus medos, com a disposição de viver o caminho do crescimento.

A humildade não deve ser entendida como humilhação, mas como a capacidade de ser verdadeiro, transparente em nossa vida, reconhecendo-nos necessitados dos outros e de Deus.

Humildade, dizia S. Teresa, é andar na verdade. Não se trata de atrofiar e esconder nossas próprias capacidades ou de desvalorizar-nos. Trata-se de reconhecer e expressar, com simplicidade, quem somos. Humildade é agradecer as capacidades e talentos e superar as limitações e fragilidades. É a virtude que mais humaniza, pois nos faz descer em direção à nossa própria humanidade e, a partir desta perspectiva, entrar no movimento que nos leva para além de nós mesmos.

A radicalidade que o Evangelho nos propõe é a radicalidade de ser radicalmente humanos. E a humildade nos despoja de tudo o que é ilusão, falsas imagens de nós mesmos, vazias pretensões de poder, prestígio e vaidade... fazendo emergir o que há de mais humano, portanto, mais divino, em nosso interior.

Na história da humanidade e da Igreja, grandes homens e mulheres deixaram transparecer em suas vidas a marca da humildade; e a humildade se expande no coração daquele que vive sinceramente sua existência.

O termo latino “humilis” deriva-se de “humus”, a terra ou o solo. Todos surgimos deste fecundo húmus fundamental, onde “humildemente” acolhemos o dom da vida, onde toda existência funda suas raízes que a nutrem e se faz “humilde” e verdadeiramente “humana”. Nós somos o solo, o húmus, onde o Deus-semente pode germinar, criar raízes e florir.

Só admitindo nossa própria fragilidade e limite e descendo ao fundo de nossa realidade, podemos retornar transformados e com abundantes riquezas descobertas no garimpo do nosso coração.

O caminho de descida ao nosso próprio “húmus”, à nossa própria condição terrena onde Deus plantou sua tenda, nos revela quem realmente somos, nos preserva de nos considerarmos como “deuses” e nos liberta do orgulho e do auto-centramento que nos destroem.

À medida que, verdadeira e completamente, nos aceitamos e nos acolhemos como húmus, mergulhamos na graça de Deus, pois ela já fala dentro de nós desde nosso nascimento.

Todas as grandes correntes espirituais, tanto do Oriente como do Ocidente, conduzem à humildade.

Reconhecer nossa realidade humana é a condição não apenas para a humanização autêntica, mas também para a verdadeira experiência de Deus. Sem humildade, facilmente corremos o risco de nos apossarmos de Deus; sem humildade, facilmente procuraríamos nos identificar com Deus.

“Sereis como deuses” (Gen. 3,5): este é o grande pecado de origem. A humildade é a virtude do ser humano que reconhece não ser “deus”. Nesse sentido, ela é a virtude dos santos e santas.

“Onde está a humildade, está também a caridade” (S. Agostinho). É que a humildade leva ao amor, e todo amor verdadeiro a supõe; sem a humildade, o eu ocupa o espaço disponível, e só vê o outro como objeto ou como inimigo. A humildade é essa atitude pelo qual o eu se liberta das ilusões que tem sobre si mesmo. Nesse sentido, a humildade significa adotar uma atitude gratuita e receptiva, de um amor agradecido que dirige tudo a Deus e entrega-se por completo à Sua Vontade.

Podemos, portanto, dizer que ser humilde é ser humano simplesmente, com a capacidade de amar. A humildade é o contrário do orgulho, soberba, prepotência... que abrem a porta para todas as injustiças: o desprezo do fraco, a exploração do pobre, a exclusão do marginalizado e o ferido da vida.

Só podemos aceitar o presente da graça divina quando temos consciência de nossa própria condição humana. Por isso, aqueles que mais avançaram no caminho espiritual foram os que mais viveram a humildade. Eles passaram pela experiência de que só podemos nos aproximar de Deus com humildade.

A humildade é o pólo terreno em nossa caminhada espiritual. Para permitir que Deus atue nas profundezas de nosso ser faz-se necessário o auto-esvaziamento, para ser preenchido por Sua presença. Agora, sim, podemos escutar a voz de Deus e sentir a sua presença em nosso próprio coração, em nossos sonhos e desejos, em nossas paixões, em nosso corpo e nossos sentimentos.

Nós “subimos” a Deus quando “descemos” à nossa humanidade. Este é o caminho da liberdade, este é o caminho do amor e da humildade, da mansidão e da misericórdia; é o caminho de Jesus também para nós.

O coração, a quem não é estranho nada do que é “humano”, alarga-se, enche-se do amor de Deus, que transforma tudo o que é humano. O caminho da humildade é o caminho da transformação.

Ao fazer, junto com Jesus Cristo, o caminho da “descida”, o ser humano vai ao encontro de sua realidade e coloca-se diante de Deus para que Ele transforme em amor tudo quanto existe nele, para que ele seja totalmente perpassado pelo Espírito de Deus.

No Novo Testamento, a humildade é entendida não apenas como atitude para com Deus, mas também para com os outros. Por isso, a humildade é vista juntamente com a mansidão, brandura, perdão... Os elevados “ideais de perfeição” nos impedem de envolver-nos com as pessoas reais e com suas feridas.

A humildade pressupõe um descentramento, um êxodo para o encontro com o outro, acolhendo-o tal como é; ela nos conduz à pura gratuidade do amor desinteressado; ela pressupõe, essencialmente, o reconhecimento da alteridade.

Por isso, não é possível viver a alteridade sem efetuar essa renúncia à posição narcisista na qual a pessoa se centra sobre si mesma, caindo numa fria insensibilidade diante de tudo o que acontece ao seu redor.

Quando alguém encontrou sua própria condição humana, reconcilia-se com tudo aquilo que é humano, quebra a rigidez na relação com o mais fraco e o enfermo, com o imperfeito e o fracassado. Vê tudo envolvido pelo olhar de bondade e misericórdia de Deus.
Texto bíblico: Lc 7, 1-10

Na oração: A oração significa uma necessária “escavação”, esse esvaziamento que finalmente abrirá um lugar para Deus. Somos chamados à santidade. Entretanto, como tudo na Criação, também a santidade está em processo, em gestação, em crescimento, em trabalho de auto-esvaziamento. Ela floresce na liberdade, na abertura e na humildade que leva à ação eficaz.
Para Jung, a humildade é a coragem de olhar a própria sombra.

Como você lida com seus conflitos, seus limites e fragilidades, suas paixões...?

domingo, 24 de abril de 2016

5º Domingo da Páscoa: Reflexão de um leigo

Formiguinhas de Jesus

Paulo Flores*

A liturgia deste domingo é fantástica. O Evangelho (Jo 13, 31-33a.34-35) traz a síntese dos 10 mandamentos feita por Jesus: “Amai-vos uns aos outros, como eu vos amei”. (Jo 13, 34).
Com um Evangelho de tamanha importância, de enorme significado, muitos tendem a reduzir a liturgia de hoje a esta leitura.
Ora, se as demais leituras não fossem importantes, elas não fariam parte da liturgia. As demais leituras não estão aí apenas “para cumprir tabela”.
É uma pena que até muitos pastores reduzam a liturgia de hoje ao Evangelho ou, simplesmente, não consigam (ou não queiram) fazer a ligação entre uma leitura e outra e ao tema central da liturgia, que é o amor que todos os cristãos devem transparecer com todos os seres, espalhando pelo mundo o Amor de Deus, o Amor que Ele tem para conosco.
Na primeira leitura (At 14, 21b-27), Paulo e Barnabé passam de cidade em cidade designando presbíteros para cada comunidade. Levando o Amor, transparecendo o Amor, eles dão responsabilidade aos pagãos, aos leigos para que eles desenvolvam as comunidades, transparecendo o Amor de Deus naquelas localidades.
Quando retornaram para o lugar de onde tinham partido, relataram com alegria que Deus “havia aberto a porta da fé para os pagãos”.
Neste ponto abro um primeiro hiato para uma primeira reflexão: Nossos dirigentes religiosos andam de “cidade” em “cidade” transparecendo o Amor? Criam novas comunidades? Estabelecem lideranças e as empoderam?
E, já entrando na segunda leitura (Ap 21,1-5a), que nos lembra que este mundo é a morada de Deus; que Jesus esteve conosco aqui nesta terra e nos fez seu povo, nos fez “Povo de Deus”. Esta leitura profetiza: “Eis que faço nova todas as coisas”, “a Morte não existirá mais, não haverá mais luto, nem choro, nem dor”.
Nós, cristãos, Povo de Deus, que tanto desejamos que nossos líderes religiosos nos empoderem, nós assumimos responsabilidades pelas/nas comunidades? Estaríamos dispostos a, em qualquer lugar que estejamos, transparecer o Amor para qualquer pessoa, independentemente de seu credo, sua cor, sua ideologia, de sua classe social...? Estaríamos dispostos a desenvolver uma nova sociedade, novas comunidades que transparecem o Amor? Estaríamos dispostos a, como Cristo nos pediu, “fazer novas todas as coisas”?
Em dias de tanta intolerância, como os que vivemos em nosso país e em várias partes do mundo, esta é uma importante reflexão.
Por fim (e não menos importante), temos o Salmo (Sl 144/145). Infelizmente, em muitas comunidades, grupos de canto nada litúrgicos trocam o salmo por outro “mais atraente”. Às vezes, sem saber, acabam por corromper a liturgia. Mas, vejam o significado do salmo de hoje, com o qual sintetizo esta reflexão.
O Salmo 144(145) nos lembra que todos nós (Povo de Deus), sejamos leigos, ministros ordenados, religiosos(as) e até mesmo “pagãos”, devemos bendizer o nome de Deus para sempre. O Salmo nos lembra que “o Senhor é muito bom para com todos, sua ternura abraça toda criatura”. Lembra-nos que todos nós, empoderados pelo Espírito Santo (mesmo que não pelos dirigentes religiosos – Jesus também não o foi) temos que proclamar o poder (Amor) de Deus e espalhar os prodígios Dele. Todos devemos ser “formiguinhas do Amor” e carregá-Lo em nossa caminhada cotidiana. Em todos os lugares onde estivermos.

* Jornalista; leigo; católico; casado; pai.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

RESSURREIÇÃO: O fracasso como possibilidade de um salto vital

Padre Adroaldo, sj

“Saíram e entraram no barco, mas não pescaram nada naquela noite” (Jo 21,3)

“Simão Pedro, ouvindo dizer que era o Senhor, vestiu sua roupa e atirou-se ao mar” (Jo 21,7)


Os discípulos, depois da morte de Jesus, voltaram de Jerusalém à Galiléia, onde tentaram retornar à normalidade da vida. Para eles, a história de Jesus tinha acabado. O seguimento desembocara no fracasso.

Estava na hora de retomar a vida que levavam antes de conhecer Jesus.

Simão Pedro anuncia que vai voltar a fazer o que sempre fazia: pescar. Os discípulos que o acompanham estavam ansiosos para participar da pesca. Voltar a pescar vai fazê-los esquecer o que lhes aconteceu.

Mas não funciona. Por mais que tentem voltar a uma vida normal, as coisas não dão certo.

Sentem-se frustrados diante do esforço e das diversas tentativas, mas não pescam nada.

As pessoas que passaram por um grande trauma entendem o que Simão Pedro e os discípulos sentem.

Querem afastar-se o mais depressa possível da dor que suportaram e dos horrores que presenciaram. Tentam juntar os cacos de suas vidas e se entregar ao jeito comum de fazer as coisas. Querem esquecer o que lhes aconteceu e se deixar conduzir pelas rotinas bem conhecidas da vida cotidiana.

Mas as repercussões da dor e do trauma continuam a martelar em suas vidas, atormentando-os durante o dia e perseguindo-os à noite. Coisas comuns provocam lembranças de um passado ainda doloroso.
Passam a noite inteira se esforçando cada vez mais, porém sem sucesso. As redes estão vazias.

O barco no mar de Tiberíades pode não estar carregado de peixes, mas os discípulos levam consigo os pesados fardos de seu passado. Livrar-se desses fardos é uma experiência longa e difícil.

Nasce o dia. Um “estranho” aparece na praia e pergunta-lhes a respeito da pesca. Diante da resposta negativa Jesus pede para lançar a rede do “outro lado” do barco.

Em seus esforços estéreis para escapar do passado e reiniciar uma vida comum, os discípulos tinham pescado, quase obsessivamente, no mesmo lugar e do mesmo modo. Repetição compulsiva do passado.

Buscam, através da pesca repetitiva, a libertação do trauma, mas não a encontram ali.

A indicação do estranho para que procurem pescar em outro lugar ajuda-os a romper o ciclo da obsessão.

De repente, os olhos do “discípulo amado” se abrem e ele reconhece quem é o estranho. Esse olhar contemplativo contagia e todos se libertam da obsessão cega de encontrar, no retorno ao passado, o alívio para suas angústias: conseguem reconhecer quem estava na praia.

No meio do fracasso revela-se a presença do Ressuscitado.

E é Ele que, num gesto de hospitalidade, prepara a refeição, na praia, para os seus discípulos.

Os êxitos e os fracassos tecem a trama da nossa existência. Ambos são inerentes à natureza humana; eles se sucedem em muitos momentos ao longo do ciclo da vida; outras vezes se combinam e aparecem juntos.

Êxitos e fracassos expressam nossa potencialidade e nossa limitação, nossa grandeza e nossa fragilidade; formam parte da engrenagem do viver.

Decidimos que uma ação é um êxito ou um fracasso em função de nosso sistema de crenças, valores e exigências. Falamos de fracasso quando nossas expectativas, projetos ou aspirações não chegam a realizar-se ou a cumprir-se como esperávamos; falamos de êxito quando chegamos a cumprir nossos projetos segundo nossas expectativas.

Êxitos e fracassos são como que balizas em um caminho que podem contribuir para que a vida seja vivida em plenitude; os êxitos enquanto que motivam, inspiram, alentam e reafirmam o sentido que uma pessoa atribui à sua existência, às suas opções e aos seus atos; os fracassos, quando se convertem em ocasião para retificar, refletir ou mergulhar mais profundamente na busca desse mesmo sentido.

O êxito e o fracasso possuem essa qualidade de crisol no qual se forjam as vidas e as pessoas.

A vida é constituída de momentos de luta e de coragem, de sonhos e de esperança, de vitória e de derrota. Este é o material com o qual são construídas as histórias e as vidas.

Nossas experiências de êxito e de fracasso são indispensáveis para viver. As primeiras trazem valor, alimentam a confiança em nós mesmos, recompensam nosso esforço. As segundas nos revelam aspectos novos de nossa pessoa, nos ajudam a recapacitar, a mudar, a redirecionar o sentido de nossa existência. Tão importante é dialogar e conviver com nossos êxitos como com nossos fracassos.

Êxito e fracasso constituem uma dessas realidades humanas que parecem estar abertas e revelar o melhor e o pior do ser humano. Há aqueles a quem o êxito os transforma em pessoas prepotente, soberbas, insuportáveis; há outros, no entanto, a quem o êxito os transforma em pessoas encantadoras, seguras de si, simpáticas, empreendedoras...

Existem também pessoas a quem o fracasso as afunda num abismo de impotência e agressividade, e outras a quem as converte em seres incrivelmente sensíveis, compassivos, humildes, resistentes...

Em um horizonte de sentido, o fracasso tem seu lugar.

Ele tende a nos deprimir, mas também pode ser uma ocasião para nos fazer mais humanos e humildes.

Ele pode ser percebido como chance para crescimento ou amadurecimento, pode ser integrado à luz de outras experiências positivas. O fracasso pode ser ocasião para ativar outras potencialidades internas. Aprendemos mais pelos nossos fracassos do que pelos nossos êxitos.

Segundo C. Jung, o maior inimigo da transformação é uma vida bem sucedida.

O fracasso, que em muitas ocasiões nos provoca medo, insegurança, mal-estar... é um espaço perfeitamente adequado para iniciar o movimento para uma maior maturação.

Mais ainda, muitas vezes são os fracassos que nos levam a iniciar uma mudança em nossas vidas, eles se revelam como uma ocasião privilegiada para um “salto vital” em direção a um horizonte maior de sentido para a própria existência.

Os fracassos nos revelam aspectos novos de nós mesmos e ajudam a nos conhecer mais.

“Há coisas que não se compreendem enquanto não se esteja definitivamente derrotado” (Péguy)

A experiência dos fracassos nos une a todos, nos iguala, é fonte de comunhão... Graças a eles vamos quebrando, pouco a pouco, nosso instinto de posse, nosso auto-centramento, nossa soberba...

O fracasso não é a última palavra; a última palavra é a Ressurreição.

O Ressuscitado que se revela presente nas “praias de nossa vida”, também nos espera nos fracassos, assim como esperou seus discípulos na pesca fracassada, com uma presença acolhedora, compassiva, facilitadora de uma refeição simples, carregada de amizade e humanidade.

Tais fracassos, re-vividos à luz da Ressurreição misericordiosa, nos fazem mais humanos, mais agradecidos, mais confiados... e despertam um novo dinamismo e uma nova criatividade diante dos desafios da vida; é aqui que somos chamados a comprovar a nossa fidelidade, a ver o que trazemos nas entranhas e no coração.

Através dos fracassos reconhecemos que só o Ressuscitado é capaz de reconstruir relações quebradas e nos lançar a uma nova missão: “Apascenta minhas ovelhas”.

Texto bíblico: Jo 21,1-19Na oração: A experiência da Ressurreição não é algo reduzido a momentos particulares da vida.
A Ressurreição e o Ressuscitado são realidades chamadas a iluminar e dar sentido à nossa vida inteira. Aqueles momentos agradáveis e aqueles momentos de desilusão; aqueles momentos plenificantes e aqueles nos quais tudo parece carecer de sentido; aqueles momentos de lucidez e aqueles momentos onde a obscuridade prevalece.
- Como você reage diante dos seus fracassos? Percebe neles uma ocasião privilegiada para um salto vital?

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

COMUNIDADES ECLESIAIS DE BASE E SUA INSERÇÃO NA SOCIEDADE


Pe. Vileci Basílio Vidal[1]

As comunidades Eclesiais de Base (CEBs) no Brasil sempre se espelharam nas comunidades camponesas de resistências – Canudos, Contestado, Caldeirão - onde a vivência da fé proporcionava a mística da luta pela libertação, assim como o cristianismo entre os primórdios. A palavra “mística”, neste caso, “sinaliza a dimensão espiritual e ética do socialismo, a fé no combate revolucionário, o compromisso total pela causa emancipadora, disposição heroica para arriscar a própria vida” (LÖWY, 2005, P. 106).
Celebramos neste dia 12 de fevereiro de 2016, os 70 anos da morte do Beato José Lourenço Gomes da Silva, líder da comunidade do Sítio Caldeirão da Santa Cruz do Deserto que fora destruída pelas forças militares do governo em 11 de maio de 1937, mas somente 54 anos depois de sua destruição e após 45 anos da morte do beato, o que era oculto se manifestava através da ocupação das terras do Caldeirão pelo Movimento dos Sem Terra – MST. E os atores principais deste movimento, que procurou fazer conhecer o que era ignorado, foram camponeses integrantes da comunidade do Assentamento 10 de Abril que, perante outras formas de agricultura familiar não camponesa, tentam patentear a ideia da reconstituição do campesinato baseado numa agricultura familiar socioambiental e inspirada na história do Caldeirão do beato Zé Lourenço. Ou seja, a ideia inovadora é fazer do Assentamento 10 de Abril uma referência da memória do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto como ponto de cultura “Caldeirão Vivo” desse patrimônio sociocultural.
O problema da reconstituição do campesinato tem sido a modernização e tecnificação. Esse é o dilema camponês para contrabalançar as exigências do mundo exterior em relação às necessidades de seus familiares. Diante desse problema de razão social do capitalismo, surgem duas estratégias completamente diferentes como saídas para o campesinato brasileiro: a primeira delas é desenvolver a produção através de outros modos da agricultura familiar para atender o mercado; a segunda, reduzir o consumo. Frente a estas duas estratégias, o campesinato brasileiro, sobretudo no Nordeste, apenas consegue afirmar a segunda estratégia devido o rendimento ser à custa do próprio esforço da família numa cultura de subsistência. A redução do consumo se da pela eliminação de suas compras no mercado ao essencial, isto é, cria-se uma relação de confiança tanto quanto na capacidade da família produzir os alimentos básicos como os objetos necessários, sem precisar sair dos limites da sua terra.
O Caldeirão do beato Zé Lourenço conseguiu dar uma resposta a esta estratégia através de uma agricultura diversificada: algodão, cana-de-açúcar, árvores frutíferas, mandioca, milho, arroz, feijão, café, criação de animais, vazante de capim; e pela capacidade de produzir seus próprios objetos tanto de trabalho como de uso pessoal através de oficinas de utensílios necessários: oficina de ferreiro, oficina de carpinteiro, flandeiro, sapateiro, oleiro, coureiro, oficina de costura e outros, como produto de limpeza, medicina alternativa etc., não produzindo para o mercado, mas para o próprio consumo da comunidade.
Ao contrário do Caldeirão, a comunidade do Assentamento 10 de Abril, já com os seus 25 anos de posse da terra, ainda passa por um tipo de adaptação, uma combinação de atividades destinadas a sustentar o cultivador em sua luta pela sobrevivência individual e familiar, como de toda a comunidade de assentados, dentro de uma ordem social que o ameaça de extinção, podendo se configurar em um “determinismo econômico” nas relações entre campesinato e o capitalismo. Porém, a base de sustentação para o enfrentamento deste perigo tem sido o resgate da memória do Caldeirão e a apropriação de novas tecnologias para a desenvoltura de uma agricultura familiar camponesa socioambiental.
Podemos concluir este artigo afirmando que, enquanto o Estado segue a lógica da globalização, atuando claramente ao lado do capital, tentando transformar o camponês em agente do próprio Estado, através do modelo de agricultura familiar que atende a estratégia de incrementar a produção para o mercado; por outro lado, ainda existe uma resistência por parte daqueles camponeses que, no seu relacionamento com a terra, pensam na conservação da mesma como herança e que não a colocam a serviço do capital, mas do bem estar da família, considerando a diversidade camponesa como canal de força para o seu protagonismo no plano de reforma agrária para o Brasil. E as CEBs, enquanto Igreja inserida na sociedade procura alimentar esta utopia!

REFERÊNCIAS
CARVALHO, Horácio Martins. O campesinato no século XXI: possibilidades e condicionantes do desenvolvimento do campesinato no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2005.
LÖWY, Michael. A mística da revolução. In: Folha de São Paulo, Caderno Mais; (Tradução de Claro Allain) 01/04/2001 – disponível em http:/www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0104200110.htm
VIDAL, Vileci Basílio. O protagonismo dos camponeses na modernidade: inovação e mudança no território do Cariri. Vila Velha: Editora 4 Irmãos, 2014.




[1] Coordenador de pastoral na Diocese de Crato, assessor da Ampliada Nacional das CEBs e professor de filosofia.

domingo, 17 de janeiro de 2016

Um casamento na roça

Cristãos católicos de todo o mundo celebram hoje o segundo domingo do Tempo Comum, período litúrgico fronteiriço de um lado com o Natal e de outro com a Quaresma. É o tempo por excelência de contemplação da missão de Jesus. Este segundo domingo segue-se ao domingo do batismo de Jesus, no qual ele lança-se à sua caminhada. Hoje, portanto, o que rezaremos nas missas e meditaremos, é aquele evento que a Igreja escolheu no período dominical para marcar o primeiro ato concreto de Jesus na missão (nas missas dos dias da semana rezamos passagens tiradas do evangelho de Marcos).
É um domingo paradoxal. O primeiro evento da missão de Jesus no Evangelho de João, selecionado para hoje, não é um grande milagre, não é um ato estrondoso. Jesus não cura nenhum cego, não interrompe uma tempestade, não se apresenta transfigurado ou radiante. Nada disso. É um evento discreto, silencioso: “um conto ingênuo a respeito de um prodígio feito num casamento na roça”.[1] Está no Evangelho de João, no capítulo 2, 1-11.
Resumo da história: numa festa de casamento em Caná, pequena aldeia da Galileia a 15 km de Nazaré, o vinho acaba e, para resolver a crise, Jesus transforma água em vinho. Qual a utilidade disso? Como entender que o primeiro dos prodígios do Filho de Deus tenha este caráter profano, transformar água em vinho numa festa para alegrar e embebedar as pessoas? Tudo isto contradiz a imagem de Jesus disseminada largamente por amplos segmentos da Igreja Católica por séculos a fio e, mais recentemente, pelas igrejas pentecostais. Não há um “superpoderoso” a realizar gestos mágicos. Não. Jesus veio para encharcar-se de humanidade e alegrar-se com os que se alegram, chorar com os que choram.
Muitos amam, mas muitos se escandalizam com o Papa Francisco e sua sem-cerimônia e simplicidade; este espírito de “casamento em Caná” do papa foi flagrado uma cena de Francisco sendo cumprimentado na virada do ano na praça São Pedro, em Roma. Alguém grita: “Papa, te esperamos em México! México, Papa, em febrero!” Ele se aproximou sorridente e perguntou: “Con tequila?”. Veja a cena emhttps://www.facebook.com/mauro.lopes.925602/posts/1657511297799884.
Há estudos muito relevantes e profundos sobre o episódio que ficou conhecido como das bodas de Caná. Vou concentrar-me com brevidade em um aspecto que considero central e revelador da essência do cristianismo.
Quem são as testemunhas da transformação da água em vinho? Parece-me que aqui há algo crucial. Os empregados, os serventes. Nem o “mestre-sala” (uma espécie de cerimonialista dos tempos de hoje), nem os noivos, nem seus pais, nem os convidados. Só os serventes (e mais Maria e os discípulos que acompanhavam Jesus): “mas o sabiam os serventes” (v. 9). É com os últimos e entre os últimos na escala social que Jesus realiza sua missão. Todos se favorecem, mas é na companhia destes últimos que Jesus se compraz, é a partir deles que tudo se realiza. Eles são os portadores da boa nova e Jesus infunde nos pequenos, explorados e humilhados confiança para mudar-se e mudar tudo, criando um novo mundo, novas relações. É incrível que os evangelhos apontem, há mais de 2 mil anos, que a salvação da humanidade virá dos humildes e deserdados –inclusive para os ricos e poderosos, que só fazem destruir tudo, inclusive a si próprios.
O Evangelho de hoje é emoldurado de maneira tocante por um trecho do profeta Isaías na primeira leitura (Is 62,1-5). É um poema delicado sobre a relação de Deus com Israel, que de terra desolada e abandonada será tornada “a desposada”. Não é à toda que o primeiro evento a marcar a missão de Jesus aconteça numa festa de casamento. Toda a simbologia judaica e cristã primitiva está marcada pela ideia das núpcias e pelo banquete que reúne o Senhor a seu povo: “A mensagem joanina global do primeiro milagre de Caná começa, assim, a se encaixar. No ‘agora’ do fim dos tempos, iniciado pela encarnação do Filho de Deus, Jesus consegue realizar o banquete nupcial escatológico em que ele, o noivo messiânico, chega para reclamar sua noiva, Israel.”[2]
Por fim, uma palavra sobre um tema que marca a teologia cristã: João não fala em seu Evangelho de milagres, mas de “sinais”, pois estes gestos de Jesus estão sempre apontando para algo além do que vemos, do que podemos perceber à primeira leitura. Quanto mais mergulhamos, mais descobrimos profundidade. Em Jesus não há apenas “palavras”. Elas são sempre criadoras de realidade, sinais, gestos que apontam para a realidade desejada, o Reino de Deus. É este o caminho que Francisco propõe à Igreja e a toda a humanidade numa renovação que retorne a Igreja à sua origem.
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[1] DODD, Charles Harold, A Interpretação do Quarto Evangelho, Paulinas, São Paulo, 1977, p. 395
[2] MEIER, John P., Um judeu marginal, vol. 2 livro 3, Imago, Rio de Janeiro, 1998, p. 514


Este texto foi publicado originalmente no blog Caminho pra casa.