sábado, 28 de julho de 2012

Um tal Jesus – Capítulo 7: Batismo no Jordão

No sétimo capítulo da novela sobre o contexto histórico e a trajetória de Jesus, veremos como foi o batizado do Moreno de Nazaré, o que conversaram Ele e João Batista momentos antes da imersão nas águas do Jordão.

Batismo no Jordão

Aquela manhã amanheceu como todas em Betabara, onde João batizava. O céu aberto, limpo, sem uma nuvem, e o vento do deserto soprando com força sobre nossas cabeças, agitando as águas do Jordão. Ainda que nenhum sinal o indicasse, aquela foi uma manhã muito importante. Todos nos recordaríamos alguns anos depois...

Batista: Eu sou somente uma voz, uma voz que grita no deserto!... Abram passagem, deixem livre o caminho para que o Senhor chegue mais depressa! Ele já vem! Não demora! Convertam-se, purifiquem-se, mudem o coração de pedra por um coração de carne, um coração novo para receber o Messias de Israel!

Foi naquele dia que Felipe, Natanael e Jesus decidiram por fim batizar-se. Os três puseram-se na fila, espremidos no meio daquela multidão de peregrinos, e entraram nas lamacentas águas do rio...

Batista: Vamos, decide-se! Quer ou não quer batizar-se?
Felipe: Bem, eu...
Batista: Você quer ou não quer apressar o Reino de Deus para que haja justiça na terra?
Felipe: Sim, isso sim, acontece que...
Batista: Mas o que é que acontece com você, galileu?
Felipe: Nada, é que a água e eu não somos bons amigos, sabe? ... Faz muitos meses que... espere, espe...!Glup...!
Batista: Que o Deus de Israel arranque a imundície do seu corpo e da sua alma e que você possa ver com seus olhos o grande dia do Senhor!
Batista: E agora, vamos ver: quem é você? Como se chama?
Natanael: Sou Natanael de Caná da Galiléia.
Batista: Quer se batizar? Quer estar limpo para quando o Messias chegar?
Natanael: Sim, João, quero... eu também quero preparar o caminho e... e colaborar com o Libertador de Israel...
Batista: Muito bem. Você disse que sim. Pois essa palavra ficará pendurada sobre sua cabeça. Quando o Messias vier, siga-o. Não o atraiçoe porque Deus não trairá você pela palavra que acaba de pronunciar. Está decidido?
Natanael: Sim, profeta, eu... eu quero...
Batista: Aproxime-se e arrependa-se de todas as suas faltas...Ainda que seus pecados sejam  vermelhos como o sangue, ficarão brancos como a neve; ainda que sejam negros como o carvão, ficarão limpos como a água da chuva...

E o profeta afundou no rio a cabeça calva de Natanael, como antes havia feito com nosso amigo Felipe e com tantos outros. Chegara a vez de Jesus...

Batista: E você, de onde é?
Jesus: Sou galileu como esses dois. Vivo em Nazaré.
Batista: Em Nazaré? Naquele vilarejo que está entre Naim e Caná?
Jesus: Sim, ali mesmo. Conhece aquilo?
Batista: Tenho familiares lá... Como disse que se chama?
Jesus: Me chamo Jesus.
Batista: Mas, por acaso você não é filho de José e Maria?
Jesus: O próprio, João. Minha mãe me disse que éramos primos meio distantes.
Batista: Sim, é verdade! Caramba, como esse mundo é pequeno!... Você vai ficar algum tempo aqui pelo Jordão?
Jesus: Sim, um par de dias mais...
Batista: Quer batizar-se?
Jesus: Sim, João, foi para isso que vim. Você prega a justiça. Eu também quero cumprir toda a justiça de Deus.
Batista: Está arrependido de seus pecados? De verdade, de coração?
Jesus: Sim, João. Me arrependo de tudo... especialmente ... do medo.
Batista: Do medo? De que você tem medo?
Jesus: Para ser sincero, João... tenho medo dele... tenho medo de Deus. Sim, Deus é exigente e às vezes quer colher onde não plantou. Assusta-me que Ele me peça o que não posso dar-lhe.
Batista: Se você se batiza, se compromete a preparar o caminho do Messias. Pense bem antes. Com Deus não valem as desculpas. Se disser “sim”, é sim. Se disser “não”, é não. Decida-se, Jesus: quer se batizar?
Jesus: Sim, João, eu quero que me batize.
Batista: Está bem. Você será mais um a colaborar com o Libertador de Israel.
Jesus: Você fala sempre desse Libertador, João. Mas, onde ele está? Quem é? Aos mensageiros de Jerusalém você disse que não era o Messias que esperamos.
Batista: Claro que não sou eu. Ele vem depois de mim e é mais forte do que eu. Vem depois de mim, mas é primeiro que eu. Eu lhe asseguro, Jesus: se eu o tivesse diante de mim, não me atreveria nem a desamarrar a correia de sua sandália.
Jesus: Mas, quem é, João? Quando virá?
Batista: Ele já veio. Meu coração me diz que o Libertador de Israel já está no meio de nós. Todavia, eu ainda não o vi.
Jesus: E como poderemos reconhecê-lo quando aparecer?
Batista: O Espírito Santo pousará sobre ele como uma pomba, suavemente, sem fazer barulho. O Espírito de Deus nunca faz barulho. É como uma brisa leve. O Messias Libertador chegará assim, sem fazer ruído. Não quebrará o caniço já meio rachado, nem apagará a mecha que ainda dê um pouco de luz... Você não leu o que disse o profeta Isaias? “Este é meu Filho amado, nele se alegra o meu coração”? Esse será o Messias, o filho predileto de Deus...
Batista: Jesus, o que acontece?... você está tremendo.
Jesus: Não, não está acontecendo nada.
Batista: Você está tremendo como os juncos do rio quando o vento do deserto sopra sobre eles!
Jesus: É que... tenho frio.
Batista: Frio? Não está fazendo frio... Como está sentindo frio se seu rosto está queimando?
Jesus: Estou nervoso, João... Por favor, batize-me antes que o medo seja mais forte e me faça mudar de idéia. Batize-me, eu lhe suplico...

O profeta João, aquele gigante tostado pelo sol, levantou energicamente seu braço, agarrou Jesus pelos cabelos e o afundou nas águas revoltas do Jordão...

Batista: Dá-nos, Senhor, Liberdade; envia-nos o Libertador. Bendito seja aquele que vem em nome do Senhor!

Em poucos segundos, o profeta tirou Jesus da água...

Jesus: Obrigado, João. Já estou mais tranqüilo. Eu me sinto... estou contente, não sei, estou muito contente!... Mas, João, o que você tem?... Agora é você que está tremendo?... João, está me ouvindo?...

Mas o profeta não escutava. Tinha os olhos cravados no céu, como que buscando alguma coisa, esquadrinhando as formas das nuvens e o vôo dos pássaros...

Batista: A voz do Senhor sobre as águas! O Deus da glória troveja!... A voz do Senhor com força, a voz do Senhor como uma tempestade...
Jesus: O que você está dizendo, João?
Batista: Nada, nada... por um momento acreditei escutar... Sabe? No deserto os pássaros falam uma linguagem misteriosa e se vêem miragens no horizonte... Não é nada, não se preocupe...
Um homem: Vamos ver se esse cara acaba logo de uma vez com isso!! Pra que tanta conversa fiada só pra molhar a cabeça!
Uma mulher: Cale essa boca, estúpido! Não tem vergonha de falar desse jeito?
Outro homem: Não empurre não, patrícia, agora é a minha vez!
Jesus: João, gostaria de falar com você quando houver menos alvoroço. Preciso falar com você!
Batista: Sou eu que preciso falar com você, Jesus. Agora volte pra margem. As pessoas ficam impacientes com este calor...

Em pouco tempo Jesus voltou para a orla...

Pedro: Que aconteceu, Jesus?... Por que você demorou tanto?
Jesus: Aproveitei para fazer algumas perguntas a João...
Felipe: Eu pensei que você havia se afogado no rio, rá, rá, rá! Olhe só, tenho água escorrendo por tudo o que é lugar... Demônios, esse profeta tem os braços como duas tenazes; te agarra, te empurra, te mete com o nariz no rio e, zaz!, batizado.
Pedro: O que você lhe perguntou, Jesus?
Jesus: O que você disse, Pedro?
Pedro: O que você perguntou ao profeta João?
Jesus: O que todos lhe perguntam: quem é o Messias, quando vem o Libertador de Israel.
Tiago: E o que ele respondeu? Disse algo de novo?
Jesus: Não, Tiago, o de sempre...
Natanael: Você está com um brilho estranho nos olhos...
Pedro: Fale claro, Jesus! O que o profeta lhe disse?... você ficou muito tempo cochichando com ele...
Jesus: Nada, Pedro, ele me disse... bem, que o Espírito de Deus não faz barulho quando vem. Que é como uma brisa suave: você a sente no rosto, mas não sabe de onde saiu nem para onde vai.
Tiago: O que é isso agora? Não é João que vinha o tempo todo falando de fogo, de machado, da cólera de Deus...? Uma brisa suave!... O Messias não será uma brisa suave: será um furacão, uma tempestade de raios!
Jesus: Eu não estou tão seguro disso, Tiago, porque, veja esses caniços... Um furacão romperia os caniços quebrados e apagaria as mechas que ainda têm um pouquinho de luz... E todos nós que estamos aqui não somos frágeis caniços e chamas meio apagadas...? Que seria de nós se Deus soprasse como um furacão? Quem se agüentaria de pé diante dele?
Natanael: Mas, o que está acontecendo hoje com você, Jesus? Está falando de um jeito muito estranho... O que mais o profeta lhe disse?
Jesus: Disse-me que o Libertador... já chegou. Que está no meio de nós.
Pedro: Pois então que saia do seu esconderijo! Ele não contou onde se meteu? Iremos buscá-lo, o levantaremos nos ombros e que comecem as pedradas!
Tiago: Companheiros, a única coisa que eu vejo claro é que aqui neste rio fedorento, não tem como ir procurar o Messias. Vejam todos esses aí na margem... O que é que o Messias vai fazer com eles? Formar um exército de piolhentos e mulheres da vida?
Felipe: Olhem só quem fala! O filho de Zebedeu que tem mais pulgas que pelos na barba!
Tiago: Pode gozar, Felipe... Quando o Messias chegar encontrará você com essa bocarra aberta e vai fechá-la com uma boa porrada! Piolhentos, rameiras e agora idiotas! Boa tropa para o Messias!
Jesus: São caniços rachados, Tiago. O Messias vem para endireitar e não pra dar porradas.
Tiago: Olhe, nazareno, isso soa muito bonito, mas o que está faltando aqui é...
Felipe: Chega de brigas, rapazes! Eu acabo de me batizar e não posso sujar minha boca com maldições. Proponho a gente ir comer uns biscoitos. Já está ficando tarde e, afinal de contas, temos de jogar alguma coisa nas tripas...
Pedro: É isso mesmo! Comer primeiro, discutir depois. André, João, Natanael! Vamos, companheiros! Você não vem, Jesus?
Jesus: Claro que sim, Pedro, vamos lá...

O sol estava pendurado na metade no céu e envolvia com seu calor a terra ressecada. O rio, o vento e os pássaros do deserto haviam visto como Deus se aproximara das águas do Jordão naquela manhã. Deus buscava Jesus e Jesus escutou sua voz. Algo de grande havia acontecido entre nós, mas então não nos demos conta de nada.

Comentário:

O rito do batismo que João popularizou, significava um reconhecimento público para demonstrar o começo de um caminho de justiça à espera do Messias. Jesus, um entre tantos, se uniu àquele movimento popular aderindo à mensagem de João. Seu batismo será o ponto de partida de uma vida a serviço de seu povo.

Jesus, como verdadeiro homem, foi compreendendo ao longo de sua vida, em contato com os demais, e partindo de diferentes experiências, o que Deus queria dele. Cresceu em idade, seguindo o processo biológico que todos seguimos. Cresceu em sabedoria: por sua abertura a Deus e aos irmãos foi encontrando qual era sua missão. Cresceu em graça: por sua fidelidade a Deus foi fortalecendo seu compromisso de serviço, até dar a vida. Tudo isso que foi um processo, os relatos evangélicos de algum modo concentram no momento do batismo em que Jesus, sensível diante da personalidade e da mensagem de João, teria uma decisiva experiência interior de fé.

Todos vivemos ao longo de nossa vida momentos fortes, nos quais sentimos de forma especial o que devemos fazer, qual nossa vocação, nossa responsabilidade. Momentos em que nos comovemos diante da dor e da injustiça que nos rodeia e encontramos forças para oferecer algo de nossa vida para que as coisas mudem. Momentos em que experimentamos a certeza de que Deus guia nossa existência, de que a história se encaminha para um futuro de esperança, de que os homens e mulheres que nos rodeiam são nossos irmãos. São momentos em que a realidade nos “fala” e nos sentimos lúcidos para saber o que significa essa linguagem. Estas experiências são difíceis de explicar ou traduzir em palavras. Algo assim deve ter vivido Jesus no Jordão quando se batizou.

Para descrever essa experiência interior e fazer-nos ver a importância que teve esse momento na vida de Jesus, os que escreveram o evangelho, a contaram usando símbolos exteriores. O céu se abre: quer dizer que Deus estava perto de Jesus. Desce uma pomba: algo novo vai começar e, assim como o Espírito pairava sobre as águas no primeiro dia da criação do mundo, agora pousa sobre Jesus, o homem novo. Ouve-se a voz de Deus escolhendo Jesus como Filho amado...  No entanto, esses sinais não devem fazer-nos esquecer que tanto o começo do compromisso de Jesus, como todo o resto de sua vida, foi algo simples, normal, humilde, sem grandiosidades. É na humildade que Deus quis revelar-se.

Entre os cristãos, o batismo tem o sentido de uma meta: “Salva-se quem se batiza”, mas em Jesus, tem o sentido de um começo. O batismo cristão é um rito pelo qual se reconhece em público, diante da comunidade, que se rompe com o mal (renuncias a Satanás, com suas obras, suas pompas?) e se adere à Boa Notícia de Jesus, comprometendo-se comunitariamente a fazer realidade os novos valores do evangelho.

Os primeiros cristãos que viveram nas terras de Israel, batizavam-se submergindo-se nas águas do rio Jordão. Os de outros lugares, o faziam banhando-se em um rio ou um tanque. Com o passar dos séculos esse costume foi se perdendo e hoje só restou esse pouco de água que se derrama sobre a cabeça do novo cristão. Os cristãos de rito ortodoxo e alguns outros grupos continuam praticando o batismo por imersão.



(Mateus 3,13-17; Marcos 1,9-11; Lucas 3, 21-22; João 1,29-34

sábado, 21 de julho de 2012

Um tal Jesus - capítulo 6: O MACHADO NA RAIZ

Neste sexto capítulo da novela sobre o contexto histórico e a trajetória de Jesus, veremos que os fariseus e sacerdotes de Jerusalém começam a se preocupar com a pregação e os batizados de João Batista no rio Jordão. Caifás, o sumo sacerdote, manda dois de seus "comparsas" até o Jordão para sondar o que o Batista estava “aprontando”.


O MACHADO NA RAIZ

Naquele tempo, José Caifás era sumo sacerdote em Israel. O sumo sacerdote era o chefe religioso de todo o país. Caifás vivia em um palácio muito luxuoso em Jerusalém. Todos nós o odiávamos, porque sabíamos dos negócios sujos em que estava metido e porque era um vendido aos romanos que ocupavam nossa terra...

Um sacerdote: Excelência, viemos lhe falar de um assunto delicado...

Caifás: Sim, já sei, é sobre os novos impostos. Está bem. Dou a minha aprovação. De qualquer maneira, não sou eu mesmo quem vai pagá-los. De minha parte, digam ao governador Pilatos que faça o que considere mais conveniente para manter a boa ordem e a paz em nosso país.  Ah, e digam-lhe também que não se esqueça do convite que me fez. Irei amanhã à Torre Antonia para saborear esse famoso vinho que lhe mandaram de Roma.

Outro Sacerdote: Nós lhe diremos, excelência, mas o assunto é outro... Veja o senhor...

Caifás: Escutem bem, se foi meu sogro Anás quem os mandou outra vez cobrar os cordeiros do dia da Páscoa, digam-lhe que sinto muito, mas agora não posso pagar-lhe nenhum denário. Tive muitos gastos com a construção do meu palácio de campo. Além disso, não vejo porque tanta pressa se, no fim, tudo fica em família.

Sacerdote: Não viemos aqui cobrar nada, excelência. Trata-se de João, o filho de Zacarias...

Caifás: Ah, então é isso...

Sacerdote: Certamente o senhor já está a par do alvoroço que esse louco vem armando lá pelas bandas do Jordão...

Caifás: Sim, desgraçadamente, estou bem inteirado...

Sacerdote: As pessoas vão em massa escutar suas fanfarronices. Dizem que é um profeta de Deus. Outros dizem que é o próprio Messias, o Libertador que nosso povo espera...

Caifás: Messias, esse cabeludo?!... Profeta!... Um piolhento, isso é o que ele é, tão piolhento e tão ensebado como toda essa chusma que vai atrás dele.

Sacerdote: Mas é preciso fazer algo, excelência. A doença pode ser contagiosa...

Caifás: Pois então, vão vocês mesmos. Sim, vão ao Jordão e averiguem o que tem por trás disso. Perguntem-lhe que demônios pretende com essa gritaria toda e esses batismos. E quem lhe deu permissão para agitar o povo. E digam-lhe, de minha parte, que tome muito cuidado, mas muito cuidado mesmo!...

Os olhos de Caifás, grandes e vigilantes como os de uma coruja, ficaram fixos na porta de cedro de seu palácio, enquanto os sacerdotes saíam. Depois, sentou-se pesadamente num grande sofá forrado de seda. Nos próximos dias lhe trariam notícias diretas daquele profeta, incômodo e rebelde, que tantos problemas estava criando a ele, o sumo sacerdote de Jerusalém.

Cada dia vinha mais gente ao Jordão para escutar João e batizar-se. Naquela mesma manhã, e antes que chegassem os sacerdotes de Jerusalém enviados por Caifás, aproximaram-se de Betabara quatro fariseus. Os fariseus se achavam santos e puros porque iam ao Templo, rezavam três vezes ao dia e jejuavam sempre que mandava a Lei de Moisés. Eles nos desprezavam e nós ríamos deles...

Fariseus: Livra-me, Senhor dos homens maus, guarda-me dos ímpios, eles têm línguas mentirosas e em seus corações só se esconde o pecado, não me contamines com eles, Deus de Israel, não permitas que a sombra de meu manto se suje com as impurezas dos homens sem Lei, homens maus, que não conhecem teus mandamentos nem respeitam teu santo Templo, livra-me, Senhor...

Quatro fariseus, envoltos em seus mantos de listas negras e brancas, abriram caminho por entre as pessoas. Olhavam para o chão e rezavam sem parar. Não queriam manchar-se conosco...

Tiago: E esses, agora, o que vieram procurar aqui? Fariseus! Puaf! Ao diabo com esses abutres!

Felipe: Deixe-os em paz, Tiago, vamos ver o que eles querem... Aqui todo mundo tem direito...

Tiago: Eles vieram espiar o que diz o profeta João!... nojeira de gente! E se acham santos...

Um fariseu: João, filho de Zacarias, viajamos de Betel para conhecê-lo e receber o batismo de purificação...

Outro fariseu: Somos cumpridores da Lei, profeta João. Respeitamos o sábado. Damos esmola ao Templo, cumprimos a oração diária e o jejum.

Fariseu: Obedecemos a Deus. O que mais você nos pede?

Batista: Eu não peço nada. É Deus que pede justiça.

Fariseu: Pois eu lhe digo, profeta João, que sempre cumprimos essa justiça. Nossas mãos estão limpas.

Fariseu: Nós também queremos preparar o caminho do Messias.

Batista: Pois ninguém prepara o caminho do Libertador dizendo que está limpo. Suas mãos podem estar limpas de tanto vocês as lavarem e lavarem, mas seu coração está sujo! Está cheio de orgulho e de presunção! Hipócritas! Vocês não são melhores do que esses camponeses que andam por aqui, e do que estas prostitutas que choram seus pecados e pedem perdão a Deus!.

Fariseu: Com quem você está nos comparando? Nós somos filhos de Abraão!

Batista: Não! Vocês são filhos de cascavel!... Vocês são como cobras: levam o veneno escondido no estômago!... Não presumam dizendo que são filhos de Abraão!... Olhem essas pedras... Deus tem poder para transformar essas pedras em filhos de Abraão!... Os filhos de Abraão são os que praticam a justiça e não se colocam acima de seus irmãos. Fariseus cegos: lavem seus corações, e não as mãos. Ajam com retidão e não fiquem rezando tantas orações! E ouçam bem: se não fizerem isso, não escaparão do fogo que se aproxima...

Tiago: É isso aí, João! Duro com eles!... Esse homem canta a verdade a quem quer que seja. Malditos fariseus! Têm sempre que meter o nariz em toda parte!

Felipe: Pois, olhem, que eu conheço um fariseu, o Benjamim, que é gente muito fina. Sempre me ajuda e...

Tiago: Que é isso, Felipe, não me venha agora defender essa gente!

Felipe: Mas o que eu estava dizendo era que o Jacobinho...

Tiago: Ei, animal, não precisa empurrar... aqui tem lugar pra todo mundo!

Um Sacerdote: Deixe-me passar, galileu!

Tiago: Ei, o que é isso?

Outro Sacerdote: Saia da frente, rapaz, temos de voltar depressa a Jerusalém!

Então, quando João gritava contra a hipocrisia dos fariseus, do alto de uma rocha, chegaram à margem os sacerdotes que vinham de Jerusalém, mandados por Caifás. Vestiam umas roupas amarelas e cheiravam a sândalo e incenso.

Batista: Juro pela minha cabeça, diz Deus, que vou pescar todos vocês com anzol! Como se pescam os peixes nas águas do rio, assim vou agarrá-los a todos e nenhum só escapará do dia da Cólera!

Sacerdote: João, filho de Zacarias!... Quem lhe deu autoridade para dizer essas coisas?

Sacerdote: Quem você pensa que é?

Batista: E quem são vocês?

Sacerdote: Caifás, o sumo sacerdote, que tem seu trono em Jerusalém e em suas mãos as leis de Deus, nos manda perguntar-lhe: com que direito você fala desse jeito? Quem você pensa que é? Não responde, heim?!... Você fica agitando essa gente com seus gritos e suas bravatas e agora fica calado?

Sacerdote: Quem você acredita que é?... O Libertador de Israel?

Batista: Eu não sou o Libertador de Israel.

Sacerdote: Então, com permissão de quem você anda aqui falando a essa gente do fogo de Deus que vem para purificar os homens? Por acaso você se acha o profeta Elias, que fazia queimar a terra com suas palavras?

Batista: Eu não sou Elias! Elias foi o maior dos profetas! Eu não sou Elias! Eu só anuncio aquele que vem e preparo seu caminho!

Sacerdote: E como você prepara seu caminho? Batizando esses desgraçados e enchendo suas cabeças com histórias?... Quem é você para batizar? Nós já temos nossas purificações. Estão escritas na Lei e o sumo sacerdote é o guardião dessa Lei. Quem você pensa que é para querer começar essa nova moda? Acha que é Moisés, com direito de dar novas leis para esse povo?

Batista: Não! Não sou nenhum Moisés!

Sacerdote: Então, o que diremos a Caifás, o sumo sacerdote? Temos de levar-lhe uma resposta. Em nome de quem você faz o que faz?

Batista: Digam isso a Caifás: em nome de quem tu fazes o que fazes? Em nome de Deus, tu te manchas as mãos nos negócios sujos de teu sogro Anás! Em nome de Deus tu te assentas à mesma mesa com os opressores romanos!

Sacerdote: Cale-se! Você ofende o sumo sacerdote! Você ofende a Deus!

Batista: Não, é o sumo sacerdote que ofendeu a Deus com suas injustiças e seus crimes! Não me calarei! Não posso calar-me! Eu sou a voz que grita no deserto: é preciso abrir um caminho reto para o Senhor! Digam a Caifás que seu trono estremece. Já disse ontem um galileu que estava entre vocês: não são os galhos que estão podres, é o tronco, é a árvore inteira. E quando está podre a raiz, é preciso arrancar a árvore toda... Vejam isso!... O que tenho nas mãos?

Felipe: Daqui estou vendo um bastão!

Batista: Não, vocês enxergam um bastão, mas olhem bem!... É o machado do Messias! Olhem também vocês e vão contar a Caifás o que viram! Deus pôs um machado em minhas mãos e eu devo pô-lo nas mãos de outro que vem depois de mim. Eu só coloco o machado na raiz da árvore para que aquele que vem depois termine mais depressa. Quando ele vier, levantará o machado e de um só golpe cortará a árvore podre. Chegou o dia da cólera de Deus! O machado já está pronto e afiado! Só falta quem o empunhe... Mas ele já vem, não se demora, já está entre nós... Onde estás, Messias?... Onde te escondes, Libertador! Vem depressa!... Abra-se já a terra e brote o Libertador! Escancarem-se já os céus e que nos chova a salvação de nosso Deus!

Dias depois os sacerdotes regressaram a Jerusalém...

Um Sacerdote: Sumo sacerdote Caifás, esse homem é um louco furioso.

Caifás: Se é um louco não é perigoso. Essa loucura passará logo.

Outro sacerdote: Ele se mete no rio, rodeado de toda essa gentalha e ali grita e vocifera. Tem nas mãos um bastão e diz que é um machado, o machado do Messias para cortar as raízes podres de uma árvore...

Caifás: Desse aí nós temos de cortar é a cabeleira!

Sacerdote: Mas não é só isso. Ele é um agitador! Falou com palavras muito duras de sua excelência.

Caifás: Não me diga!? E o que ele falou de mim?

Sacerdote: Disse que o trono de sua excelência está estremecendo, porque chega o dia da cólera de Deus. Disse que ele é a voz que grita no deserto.

Caifás: Pois que continue gritando, que os agitadores duram pouco neste país... Que continue, que continue falando. Resta pouco a esse João... resta-lhe mesmo muito pouco...

João continuava batizando as pessoas que acudiam ao Jordão. Tinha pressa. Sabia melhor que ninguém que seus dias estavam contados. Tinha pressa mas não tinha medo. Levava dentro de si a coragem dos profetas, desde Elias, o maior deles, até Zacarias, que morreu assassinado entre o templo e o altar.

ComentárioA atividade de João Batista inquietava cada vez mais as autoridades tanto políticas como religiosas, que temiam qualquer movimento popular. Por isso, a autoridade central representada pelo sumo sacerdote Caifás envia ao Jordão uma comissão de investigação. A máxima autoridade religiosa de Israel era o sumo sacerdote. Do templo de Jerusalém, controlava todo o sistema teocrático no qual a religião e a política iam sempre de mãos dadas. Do sumo sacerdote dependia o pessoal do templo, formado fundamentalmente pelos sacerdotes e levitas.

Poucos anos antes do nascimento de Jesus, Anás era o sumo sacerdote. Este homem, da poderosa família sacerdotal de Beto, era muito influente política e economicamente. No cargo de sumo sacerdote sucederam-lhe cinco de seus filhos e, finalmente, seu genro José Caifás, que foi quem condenou Jesus à morte. Se em algum tempo histórico os sumos sacerdotes representaram os sentimentos religiosos do povo, nos anos em que são narrados os evangelhos, esta instituição estava totalmente corrompida. O sumo sacerdote não era mais que um colaboracionista  do imperialismo romano, o máximo representante de um sistema religioso que oprimia as pessoas com leis e com medo. Deste cargo obtinha também grandes benefícios econômicos. A personalidade de João Batista, autêntica, valente e realmente religiosa, fazia tremer todo esse sistema. Para qualquer instituição - seja religiosa, política ou cultural - a voz dos profetas é sempre  perigosa. Um profeta nasce fora da instituição, ou precisamente por sê-lo, vai ficando cada mais à margem dela. A instituição representa a lei, a norma, a segurança, o poder. O profeta, por seu lado, encarna o risco, a audácia, a liberdade, a imaginação. Ao longo de todos os tempos, existiu o conflito instituição-profetismo, inclusive na Igreja.

Também se aproxima de João um grupo de fariseus. Nos relatos evangélicos eles são apresentados sempre como os mais tenazes inimigos de Jesus. A palavra “fariseu” quer dizer “separado”. Os fariseus não eram sacerdotes. Formavam um movimento leigo que era dirigido pelos letrados e escribas. Sua prática religiosa estava centrada obsessivamente no estrito cumprimento da Lei e, por isso mesmo, desprezavam e se “separavam” do povo que não compartilhava nem entendia uma escrupulosidade tão opressiva.

A mentalidade farisaica continua viva em todas as pessoas que imaginam Deus como um “banqueiro” que anota nossos atos bons e maus, a quem podemos “comprar” conseguindo méritos (sacrifícios, promessas, votos...). Está viva sobretudo nos que pensam que são melhores e desprezam os outros. Uma das maiores novidades da mensagem de Jesus é proclamar que esses que se acham bons serão os últimos, e os últimos, os “pecadores” (prostitutas, bêbados, ladrões) são os primeiros para Deus.

João fala à comissão investigadora da chegada do Dia da Cólera de Deus. A Ira, a Cólera de Deus, é um tema bíblico a que recorre a maioria dos profetas. Não se trata de uma ira caprichosa nem arbitrária, nem tampouco uma forma de vingança passional que Deus toma contra os que o ofendem “pessoalmente”. Quando os profetas falam desta Cólera se referem especialmente ao Dia em que Deus esgote sua paciência diante da ação dos opressores e intervenha de umavez, com todo seu poder,  em favor dos oprimidos. Muito menos se deve entender que o Deus do Antigo Testamento seja um Deus vingativo e colérico, superado pelo Deus de Jesus, só amor e misericórdia. Os textos do Novo Testamento, tanto no Evangelho como em outros livros, recorrem ao tema da Cólera (Rom 2,5-8; Apc 6,12-17), assim como os antigos profetas também falaram da ternura ilimitada de Deus (Ex 34,6-7; Is 49,13-16).

(Mateus 3,7-12; Lucas 3,7-20; João 1,19-28)

sábado, 14 de julho de 2012

Um tal Jesus - Capítulo 5: OS CANIÇOS RACHADOS

A voz do profeta João estremecia o deserto de Judá e ressoava no coração da multidão que se reunia para escutá-lo às margens do Jordão. João anunciava um mundo novo com que todos nós sonhávamos.
Batista: O fogo do Senhor limpará os crimes e os abusos que cobrem esta terra como uma lepra. E Deus fará então coisas maravilhosas, nunca ouvidas. Criará novos céus e uma terra nova e neles reinará por fim a justiça. Não se escutarão mais prantos nem gemidos...

Enquanto João falava, Jesus se afastou de nós e se pôs a caminhar. Foi se distanciado das margens abarrotadas do Jordão até onde não havia tanta gente... André e eu nos olhamos e nos pusemos a segui-lo... Eu me lembro que eram quatro horas da tarde...

João: Pra onde será que ele vai agora, André?

André: Eu não sei... talvez queira tomar um pouco de ar... Ali embaixo não há quem consiga respirar, João... Escute, o que foi mesmo que Felipe disse que ele fazia?... Em que ele disse que trabalhava?...

João: Bah!, disse que era um “conserta-tudo”, imagine só, naquela biboca de Nazaré, pouco trabalho terá... Lá até os ratos morrem de fome... Ah... ah... atchim!!!

Quando espirrei, Jesus olhou para trás e viu que André e eu o seguíamos...

Jesus: Caramba, nem tinha percebido vocês...

João: Ahtchim!... Maldição!... Acho que peguei esse resfriado quando me meti no rio para batizar-me... Ah...Ah... Quando saí tinha um arzinho frio que... Ahtchim!... Maldição!

Jesus: Onde vocês estão indo?

André: E você pra onde ia?

Jesus: Não, não ia pra lugar nenhum... Faz muito calor ali... E esses mosquitos acabam com qualquer um... Saí pra dar uma volta...

André: É, pois nós também...

João: Pedro tem razão... Essa peste de rio enjoa qualquer um... Aqui pelo menos se pode respirar...

André: É, a verdade é que está fazendo um calor...

João: Preste atenção no que eu digo: isso aqui é como o forno da Babilônia...

André: Bem... é um calor que... rãrã...

Jesus: Escutem, porque não nos sentamos um pouquinho ali em baixo daquelas palmeiras?

João: Boa ideia, Jesus, porque ... pense bem, com este calor...

Nós dois queríamos conversar com Jesus. Mas, claro, não sobre o calor. Não sei, aquele moreno de Nazaré nos pareceu simpático desde que o vimos chegar com Natanael e Felipe. Queríamos saber mais coisas a respeito dele...

João: Então, o Felipe disse que você é uma espécie de “conserta-tudo”... Como é isso, um tipo de pedreiro?

Jesus: Pedreiro não... bem, pedreiro sim...e ferreiro e carpinteiro. Um faz-remendos, vamos. O que aparecer. Em Nazaré é difícil ter um trabalho fixo... Vocês já estiveram lá?... Aquilo é muito pequenino. Tem de se ter o olho aberto e pegar o que vier.

André: Mas você... vive com quem?... é casado?...

Jesus: Não, eu não. Eu vivo com minha mãe.

André: E seu pai?...

Jesus: Bem, ele morreu há algum tempo, quando eu tinha uns dezoito anos...

João: E aí?... Não pensa em se casar?

Jesus: Pois, olhe rapaz, eu conheci uma garota... Mas, como lhe dizer... não via claro...

João: É, eu imagino. Em Nazaré, com meia dúzia de mulher feia, deve ser difícil encontrar alguma que valha a pena. O que você tem de fazer é vir para Cafarnaum. Lá a vida é bem diferente. Há bom trabalho, mais ambiente...

Jesus: Vocês quatro são pescadores, não é isso?

André: Sim, temos um negócio com Zebedeu, o pai deste aqui, e que tem um gênio pra lá de ruim, o condenado!

João: Espere aí, ô magricela, vai se meter com o pai de outro... deixe o meu tranquilo!...

André: Bem, Jesus, mas você... como é?... trabalhando nesse tipo de serviço e... e nada mais?...

Jesus: Como nada mais?... Nada menos!... Escute, você sabe o que é sair todos os dias em busca de trabalho? Isso não é fácil.

André: Sim, claro,  não quis dizer que... bem, você sabe.. o movimento... não funciona lá em Nazaré?

Jesus: Vocês são zelotas?

João: Não, nós não... Bem, sim... quer dizer... O movimento é a única esperança que nos resta de tirarmos esses malditos romanos de cima de nós! Você não acha, Jesus?

Jesus: Pois eu não sei... francamente não sei.

João: Como não sabe? Você tem de saber.

Jesus: Está bem. Há que saber também qual é o animal que tem as patas na cabeça.

João: Eu não sei... qual é?

Jesus: O piolho!

João: Como o piolho?  Ah, sim, as patas dele na minha cabeça! Essa foi muito boa, sim!

Jesus: E essa é pra você, André: em que um piolho se parece com um romano, eh?

André: Um piolho ... com um romano?

Jesus: Tá na cara, homem! Os romanos também têm as patas colocadas na nossa cabeça!

João: E são uns animais também!... Muito bom! Muito bom! Conta outra, Jesus...

Eu me lembro daquele dia como se fosse hoje. Fecho os olhos e ainda vejo diante de mim Jesus com aquele sorriso largo que tantos amigos ganhava. Bastou meia dúzia de piadas, umas histórias bem contadas, a confiança que teve em compartilhar conosco as preocupações que lhe faziam comichões por dentro e que o haviam trazido até João o batizador... e já era como se nos conhecêssemos desde sempre. O moreno era um desses homens com quem a gente topa uma única vez e depois não esquece nunca mais na vida.

João: Quando eu contar essas piadas pro Pedro...!

André: E de onde você tira todas essas histórias, Jesus?

Jesus: Bah!, como em Nazaré as noites são muito longas, nos juntamos num grupo de amigos e cada um inventa uma história, o outro conta uma lenda... para matar o tempo, entende?

André: E agora, o que vai fazer? Voltar a Nazaré e continuar matando o tempo?

Jesus: Bem, isso é o que eu não sei. Por um lado eu gosto da vidinha de lá. E tenho de preocupar-me com minha mãe que está sozinha... Mas, por outro lado, não sei, às vezes sinto vontade de me pôr a correr, de escapar...

André: De escapar de quem?

Jesus: Não, escapar não... Não sei, viajar, ir a Jerusalém, conhecer o mundo, entende?

João: Pois faça que nem o Felipe. Compre uma carroça e uma corneta e se ponha a vender amuletos e badulaques por todas as cidades.

Jesus: Mas isso deve ser complicado, não?... Não sei, eu queria fazer outra coisa... Quando ouço o profeta João, digo para mim mesmo: Isto sim é que vale a pena, esse homem está ajudando as pessoas... Mas eu, o que estou fazendo pelos outros?

João: E o que faço eu? E o que faz esse magricela...Bah, aqui somos todos uma calamidade. Mas veja, você que tem uma lábia tão boa, podia comprar uma pele de camelo e se pôr a batizar na outra margem do rio... Isso, mete-se a profeta!

Jesus: Não fale bobagem, João. E eu tenho lá cara de profeta? Um camponês como eu, que nem estudou as Escrituras e que treme os joelhos quando tem de ler na sinagoga...

João: Bah, isso é no começo. Qualquer um se acostuma a tudo. No começo o mar me dava medo. E já levo mais de quinze anos lançando a rede no lago!

André: Você não gostaria de ser pescador como nós, Jesus?

Jesus: Sim, mas... acontece que nem sei nadar. Na primeira e vocês me tiram afogado!

João: Não, homem, venha a Cafarnaum. Só os gatos têm medo de água!

Jesus: Pois se você soubesse... na noite passada sonhei com o mar...

André: Ah, sim? Conte, conte esse sonho.

Jesus: Foi um sonho esquisito. Me deixou preocupado. Olhem só: eu estava assim, como agora, diante do mar. Então, de dentro da água saiu o profeta João. Olhou-me, mostrou-me uns caniços na margem e se afastou para o deserto. E eu não o vi mais.

André: E daí, o que aconteceu?

Jesus: Depois veio um vento muito forte que balançava os caniços da margem, os rachava, os partia... E se armou um redemoinho com o vento e eu senti que o vento me agarrava por todos os cabelos, como quando João agarra os que vêm se batizar, e me levantou e me levou até os caniços que estavam rachados e partidos...

João: E o que você fez?

Jesus: Agachei-me e me pus a consertá-los. Eram muitos caniços rachados... Eu os ia levantando um a um. Era um trabalho difícil, mas eu gostava, me sentia contente. E então acordei.

João: Veja lá, homem! E por que esse sonho o preocupa? É um sonho até meio aborrecido, eu acho... Suas piadas são melhores...

Jesus: Mas eu estava contente arrumando os caniços rachados, me sentia feliz, nunca havia me sentido assim...

João: Bem, está certo, cada um se diverte como pode...

Jesus: Não. O que acontece é que, quando o profeta João, agora pouco, estava falando do novo céu e da nova terra, voltei a sentir a mesma alegria... Por isso acordei do sonho...

João: É,... acho que de tanto ouvir João o batizador falar de Messias, de Libertação, todos nos pusemos a sonhar com isso. E, pelas cabeleiras desse João, esse libertador há de ser um grande sujeito! Esse sim construirá a terra nova... Vocês sabem como eu imagino a nova terra do Messias? Primeiro de tudo, sem romanos. Esses, fora. Sem eles acabarão os impostos e os abusos. Fora também Herodes e sua turma... vermes podres! Esses têm de ser esmagados! Fora também os publicanos traidores...!

Jesus: Epa, vai devagar, que na nova terra tem de caber muita gente dentro. E o que você está fazendo é jogar gente fora...

João: Já disse o profeta: O Messias queimará todo o lixo e arrancará pela raiz os ramos velhos...

Jesus: E os caniços que ficam dobrados, quase quebrados?

João: E para que serve um caniço rachado? Não acredito que o Messias se ponha a consertá-los como você em seu sonho...

André: E você, Jesus, como imagina que será a nova terra?

Pedro: Eh!! Onde vocês estão...? Onde se meteram!?

André: É meu irmão Pedro. Já está dando as caras por aqui...

Pedro: Eh! Pessoal de Cafarnaum! Cadê vocês?

João: Aqui, Pedro!

Pedro: Mas, onde é que vocês se meteram nesse tempo todo?

André: Estávamos aqui falando do Messias...

João: Ô, narigão, esse moreno Jesus sabe cada piada...

Pedro: Bah! piadas!. Aqui a gente tem de aproveitar o tempo. Nós descemos pelo rio e descobrimos um lugar cheio de caranguejos. Natanael fez uma sopa que está... hum... Vocês não têm fome? Vamos lá.

Jesus: Ei, Pedro, você se chama Pedro, não é? Estive pensando ontem. Eu nunca havia ouvido esse nome...

João: Que nada! Ele se chama Simão!

Jesus: E por aqui se diz Pedro?

Pedro: Ah, Jesus essa é uma outra história... Falaram pra Jesus do Movimento?

João: Bem, você sabe. Este aqui se mete em todas as brigas e confusões. Não faz mais que gritar e atirar pedras... Por isso lhe pusemos o apelido de Pedro:  pedro-pedra, pedra-pedro,  entendeu?

Jesus: Ah, então você é Simão, mas por isso o chamam de Pedro...

Pedro: Bem, parem de ficar falando de mim e vamos com os outros tomar uma sopa de caranguejos... Hum... o cheirindo está chegando até aqui... Hummm... Ao ataque, companheiros!

A noite caía sobre Betabara. A margem do rio começava a ficar salpicada de fogueiras e todo o campo cheirava a comida feita na hora. O fato é que André e eu então não entendemos muito o sonho que havia impressionado tanto a Jesus. Agora, já velho, recordando aquele dia em que Jesus começou a ser meu amigo, e longe daquela terra em que conheci o moreno, tudo fica claro. Os antigos escritos de Isaias já o anunciavam: ele endireitou os caniços rachados e não apagou uma só das mechas que ainda davam uma chispa de luz.


Comentários
Jesus, como qualquer um de nós, foi um homem de busca. Buscou resposta às perguntas que a vida e a realidade iam lhe colocando. E buscou, fundamentalmente, como orientar seu serviço a Deus e aos homens nas circunstâncias de conflito em que viviam seus compatriotas. Jesus realizou esta busca por meio da reflexão e da oração, mas também compartilhando com seus amigos inquietações e perguntas. A busca da própria vocação não é um processo individualista. A comunidade, os irmãos ajudam a ver mais claro e nos dão forças com sua solidariedade para que tomemos as decisões que Deus, através da realidade, exige de nós.

O estilo de muitas expressões de Jesus, que o Evangelho conservou, nos permite ver nele um homem espirituoso, simpático, agudo. Um homem com anedotas, valendo-se de histórias e contos. Também com aquilo que hoje chamamos chistes ou jogos de palavras.

Todos os povos da antiguidade, e ainda muitos atualmente, atribuem uma grande importância aos sonhos. Acredita-se que os sonhos permitem ao homem colocar-se em contato com Deus e descobrir neles anúncios do que acontecerá no futuro. Em Israel também estava espalhada essa crença e se dava uma significação especial a determinados sonhos. Nas Escrituras, tanto no Antigo como no Novo Testamento, contam-se alguns desses sonhos, reveladores do futuro ou dos planos de Deus sobre os homens (Gn 27,5-10; Dan 7,1-28; Mt 1,18-25). Sem cairmos na superstição, essas crenças apontam para algo profundamente verdadeiro: Deus se aproxima do homem, na vigília ou em sonho, através daquele que vê, como através de sua psicologia e dos caminhos complexos de seu cérebro. E um crente deve saber descobrir isso através de qualquer experiência.

O sonho que Jesus conta a João e André, recolhe uma das mais lindas profecias messiânicas de Isaias (42,1-4), na qual o profeta descreve o Messias como um mensageiro da infinita misericórdia e paciência de Deus, justo, porém não intolerante, lutador mas não dominador.

(João 1,35-39)