Cristãos católicos de todo
o mundo celebram hoje o segundo domingo do Tempo Comum, período litúrgico
fronteiriço de um lado com o Natal e de outro com a Quaresma. É o tempo por
excelência de contemplação da missão de Jesus. Este segundo domingo segue-se ao
domingo do batismo de Jesus, no qual ele lança-se à sua caminhada. Hoje,
portanto, o que rezaremos nas missas e meditaremos, é aquele evento que a
Igreja escolheu no período dominical para marcar o primeiro ato concreto de
Jesus na missão (nas missas dos dias da semana rezamos passagens tiradas do
evangelho de Marcos).
É um domingo paradoxal. O
primeiro evento da missão de Jesus no Evangelho de João, selecionado para hoje,
não é um grande milagre, não é um ato estrondoso. Jesus não cura nenhum cego,
não interrompe uma tempestade, não se apresenta transfigurado ou radiante. Nada
disso. É um evento discreto, silencioso: “um conto ingênuo a respeito de um
prodígio feito num casamento na roça”.[1] Está no Evangelho de João, no
capítulo 2, 1-11.
Resumo da história: numa
festa de casamento em Caná, pequena aldeia da Galileia a 15 km de Nazaré, o
vinho acaba e, para resolver a crise, Jesus transforma água em vinho. Qual a
utilidade disso? Como entender que o primeiro dos prodígios do Filho de Deus
tenha este caráter profano, transformar água em vinho numa festa para alegrar e
embebedar as pessoas? Tudo isto contradiz a imagem de Jesus disseminada
largamente por amplos segmentos da Igreja Católica por séculos a fio e, mais
recentemente, pelas igrejas pentecostais. Não há um “superpoderoso” a realizar
gestos mágicos. Não. Jesus veio para encharcar-se de humanidade e alegrar-se
com os que se alegram, chorar com os que choram.
Muitos amam, mas muitos se
escandalizam com o Papa Francisco e sua sem-cerimônia e simplicidade; este
espírito de “casamento em Caná” do papa foi flagrado uma cena de Francisco sendo
cumprimentado na virada do ano na praça São Pedro, em Roma. Alguém grita:
“Papa, te esperamos em México! México, Papa, em febrero!” Ele se aproximou
sorridente e perguntou: “Con tequila?”. Veja a cena emhttps://www.facebook.com/mauro.lopes.925602/posts/1657511297799884.
Há
estudos muito relevantes e profundos sobre o episódio que ficou conhecido como
das bodas de Caná. Vou concentrar-me com brevidade em um aspecto que considero
central e revelador da essência do cristianismo.
Quem são as testemunhas da
transformação da água em vinho? Parece-me que aqui há algo crucial. Os
empregados, os serventes. Nem o “mestre-sala” (uma espécie de cerimonialista
dos tempos de hoje), nem os noivos, nem seus pais, nem os convidados. Só os
serventes (e mais Maria e os discípulos que acompanhavam Jesus): “mas o sabiam
os serventes” (v. 9). É com os últimos e entre os últimos na escala social que
Jesus realiza sua missão. Todos se favorecem, mas é na companhia destes últimos
que Jesus se compraz, é a partir deles que tudo se realiza. Eles são os
portadores da boa nova e Jesus infunde nos pequenos, explorados e humilhados
confiança para mudar-se e mudar tudo, criando um novo mundo, novas relações. É
incrível que os evangelhos apontem, há mais de 2 mil anos, que a salvação da
humanidade virá dos humildes e deserdados –inclusive para os ricos e poderosos,
que só fazem destruir tudo, inclusive a si próprios.
O Evangelho de hoje é
emoldurado de maneira tocante por um trecho do profeta Isaías na primeira
leitura (Is 62,1-5). É um poema delicado sobre a
relação de Deus com Israel, que de terra desolada e abandonada será tornada “a
desposada”. Não é à toda que o primeiro evento a marcar a missão de Jesus
aconteça numa festa de casamento. Toda a simbologia judaica e cristã primitiva
está marcada pela ideia das núpcias e pelo banquete que reúne o Senhor a seu
povo: “A mensagem joanina global do primeiro milagre de Caná começa, assim, a
se encaixar. No ‘agora’ do fim dos tempos, iniciado pela encarnação do Filho de
Deus, Jesus consegue realizar o banquete nupcial escatológico em que ele, o
noivo messiânico, chega para reclamar sua noiva, Israel.”[2]
Por fim, uma palavra sobre
um tema que marca a teologia cristã: João não fala em seu Evangelho de
milagres, mas de “sinais”, pois estes gestos de Jesus estão sempre apontando
para algo além do que vemos, do que podemos perceber à primeira leitura. Quanto
mais mergulhamos, mais descobrimos profundidade. Em Jesus não há apenas
“palavras”. Elas são sempre criadoras de realidade, sinais, gestos que apontam
para a realidade desejada, o Reino de Deus. É este o caminho que Francisco
propõe à Igreja e a toda a humanidade numa renovação que retorne a Igreja à sua
origem.
_____________________
[1] DODD, Charles Harold, A
Interpretação do Quarto Evangelho, Paulinas, São Paulo, 1977, p. 395
[2] MEIER,
John P., Um judeu marginal, vol. 2 livro 3, Imago, Rio de Janeiro, 1998, p. 514
Este
texto foi publicado originalmente no blog Caminho
pra casa.
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