domingo, 17 de janeiro de 2016

Um casamento na roça

Cristãos católicos de todo o mundo celebram hoje o segundo domingo do Tempo Comum, período litúrgico fronteiriço de um lado com o Natal e de outro com a Quaresma. É o tempo por excelência de contemplação da missão de Jesus. Este segundo domingo segue-se ao domingo do batismo de Jesus, no qual ele lança-se à sua caminhada. Hoje, portanto, o que rezaremos nas missas e meditaremos, é aquele evento que a Igreja escolheu no período dominical para marcar o primeiro ato concreto de Jesus na missão (nas missas dos dias da semana rezamos passagens tiradas do evangelho de Marcos).
É um domingo paradoxal. O primeiro evento da missão de Jesus no Evangelho de João, selecionado para hoje, não é um grande milagre, não é um ato estrondoso. Jesus não cura nenhum cego, não interrompe uma tempestade, não se apresenta transfigurado ou radiante. Nada disso. É um evento discreto, silencioso: “um conto ingênuo a respeito de um prodígio feito num casamento na roça”.[1] Está no Evangelho de João, no capítulo 2, 1-11.
Resumo da história: numa festa de casamento em Caná, pequena aldeia da Galileia a 15 km de Nazaré, o vinho acaba e, para resolver a crise, Jesus transforma água em vinho. Qual a utilidade disso? Como entender que o primeiro dos prodígios do Filho de Deus tenha este caráter profano, transformar água em vinho numa festa para alegrar e embebedar as pessoas? Tudo isto contradiz a imagem de Jesus disseminada largamente por amplos segmentos da Igreja Católica por séculos a fio e, mais recentemente, pelas igrejas pentecostais. Não há um “superpoderoso” a realizar gestos mágicos. Não. Jesus veio para encharcar-se de humanidade e alegrar-se com os que se alegram, chorar com os que choram.
Muitos amam, mas muitos se escandalizam com o Papa Francisco e sua sem-cerimônia e simplicidade; este espírito de “casamento em Caná” do papa foi flagrado uma cena de Francisco sendo cumprimentado na virada do ano na praça São Pedro, em Roma. Alguém grita: “Papa, te esperamos em México! México, Papa, em febrero!” Ele se aproximou sorridente e perguntou: “Con tequila?”. Veja a cena emhttps://www.facebook.com/mauro.lopes.925602/posts/1657511297799884.
Há estudos muito relevantes e profundos sobre o episódio que ficou conhecido como das bodas de Caná. Vou concentrar-me com brevidade em um aspecto que considero central e revelador da essência do cristianismo.
Quem são as testemunhas da transformação da água em vinho? Parece-me que aqui há algo crucial. Os empregados, os serventes. Nem o “mestre-sala” (uma espécie de cerimonialista dos tempos de hoje), nem os noivos, nem seus pais, nem os convidados. Só os serventes (e mais Maria e os discípulos que acompanhavam Jesus): “mas o sabiam os serventes” (v. 9). É com os últimos e entre os últimos na escala social que Jesus realiza sua missão. Todos se favorecem, mas é na companhia destes últimos que Jesus se compraz, é a partir deles que tudo se realiza. Eles são os portadores da boa nova e Jesus infunde nos pequenos, explorados e humilhados confiança para mudar-se e mudar tudo, criando um novo mundo, novas relações. É incrível que os evangelhos apontem, há mais de 2 mil anos, que a salvação da humanidade virá dos humildes e deserdados –inclusive para os ricos e poderosos, que só fazem destruir tudo, inclusive a si próprios.
O Evangelho de hoje é emoldurado de maneira tocante por um trecho do profeta Isaías na primeira leitura (Is 62,1-5). É um poema delicado sobre a relação de Deus com Israel, que de terra desolada e abandonada será tornada “a desposada”. Não é à toda que o primeiro evento a marcar a missão de Jesus aconteça numa festa de casamento. Toda a simbologia judaica e cristã primitiva está marcada pela ideia das núpcias e pelo banquete que reúne o Senhor a seu povo: “A mensagem joanina global do primeiro milagre de Caná começa, assim, a se encaixar. No ‘agora’ do fim dos tempos, iniciado pela encarnação do Filho de Deus, Jesus consegue realizar o banquete nupcial escatológico em que ele, o noivo messiânico, chega para reclamar sua noiva, Israel.”[2]
Por fim, uma palavra sobre um tema que marca a teologia cristã: João não fala em seu Evangelho de milagres, mas de “sinais”, pois estes gestos de Jesus estão sempre apontando para algo além do que vemos, do que podemos perceber à primeira leitura. Quanto mais mergulhamos, mais descobrimos profundidade. Em Jesus não há apenas “palavras”. Elas são sempre criadoras de realidade, sinais, gestos que apontam para a realidade desejada, o Reino de Deus. É este o caminho que Francisco propõe à Igreja e a toda a humanidade numa renovação que retorne a Igreja à sua origem.
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[1] DODD, Charles Harold, A Interpretação do Quarto Evangelho, Paulinas, São Paulo, 1977, p. 395
[2] MEIER, John P., Um judeu marginal, vol. 2 livro 3, Imago, Rio de Janeiro, 1998, p. 514


Este texto foi publicado originalmente no blog Caminho pra casa.

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