Na
primeira leitura (Dt 4,1-2.6-8) deste domingo, Moisés apresenta a Lei ao Povo de
Deus e ressalta: “Nada acrescenteis, nada
tireis, à palavra que vos digo”. O Salmo (Sl 14,2-3ab.3cd-4ab.5) nos
indica quem habitará a “Casa do Senhor”. Na segunda leitura (Tg 1,17-18.21b-22.27), Thiago nos ensina
que “todo dom precioso e toda dádiva perfeita vêm do
alto; descem do Pai das luzes”. Por fim, no Evangelho (7,1-8.14-15.21-23), ao
repreender os fariseus e mestres da Lei, Jesus nos chama a atenção para o que é
mais importante. “De nada adianta o culto que me
prestam, pois as doutrinas que ensinam são
preceitos humanos'. Vós abandonais o mandamento de
Deus para seguir a tradição dos homens'”.
O texto abaixo, do
Pe. Adroaldo nos ajuda a refletir sobre estas leituras.
Os riscos de uma religião desumanizadora
Padre Adroaldo
“De
nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são
preceitos humanos”
Era uma vez um mosteiro no qual se
respeitava escrupulosamente o silêncio. Mas cada dia, justamente às seis horas
da tarde, quando os monges iniciavam a oração das Vésperas, aparecia um gato
pela porta da igreja, miando fortemente.
Diante da insistência e intensidade
dos miados, o abade tomou uma decisão: pediu a um irmão que, das seis às sete
da tarde, amarrasse o gato em uma pilastra que havia na entrada do mosteiro,
longe da capela onde eles rezavam. E assim fazia o irmão, todas as tardes.
O tempo passou. O abade faleceu e veio
substituir-lhe um monge de outro convento distante, que logo percebeu o que
cada tarde se fazia com o gato. E pediu para continuar a repetir o mesmo rito.
Meses depois faleceu o gato.
Imediatamente, o novo abade chamou o irmão e lhe disse: “Compre outro gato o quanto
antes para amarrá-lo, cada tarde, das seis às sete horas, na coluna da entrada
da igreja”.
Este antigo conto mostra uma tendência
bastante habitual no comportamento humano. Começamos fazendo algo porque nos
parece útil, mas logo absolutizamos essa ação, convertendo-a em um rito ao qual
atribuímos valor por si mesmo, à margem de sua utilidade. Quando isso acontece,
dá a impressão que o único motivo que nos leva a manter uma ação ou um
comportamento é que “sempre se fez assim”.
Se, além disso, a esse comportamento
lhe é atribuído um caráter “religioso”, acrescenta-se outra razão poderosa para
perpetuá-lo. E se, finalmente, a “autoridade religiosa” atribui a si o poder de
controlá-lo e de vigiar seu cumprimento, temos todos os ingredientes tanto para
o imobilismo como para situar a ação prescrita acima inclusive do valor e do
bem da pessoa.
Tudo isto está presente na cena
evangélica de hoje. A atuação de Jesus é perigosa, pois Ele ensina a viver com
aquela liberdade surpreendente. Convém corrigi-la.
Os fariseus e doutores da lei vigiavam
rigorosamente o cumprimento das normas rituais: lavar as mãos antes de comer, a
maneira certa de lavar os copos, jarras e vasilhas de cobre...
Provavelmente, tais normas surgiram
como uma medida de prevenção higiênica. O erro acontece quando se absolutiza e
se acaba declarando “impuras” (religiosamente) às pessoas que não as cumprem.
Desse modo, o que poderia ser uma prescrição saudável terminou se convertendo
em uma arma de poder e em um pretexto gravemente discriminatório.
Pretextos desse tipo foram utilizados
(e se utilizam) com frequência, na sociedade e na Igreja, para estigmatizar determinadas
pessoas ou grupos. E a autoridade, religiosa ou civil, se converte em “polícia
das consciências”, acusando, condenando ou inclusive eliminando aqueles que se
afastam da norma prescrita. “Quem sou eu
para julgá-los?” (Papa Francisco).
Será que Deus complica tanto nossa
vida com o peso das normas, proibições, culpas...?
Mais uma vez, frente às armadilhas da
religião, a atitude de Jesus é claríssima. Custa-nos entender como há pessoas
que professam ser suas seguidoras e continuam absolutizando normas, ritos,
crenças..., acima do bem das pessoas, às quais não duvidam em amaldiçoar e
desqualificar do modo mais veemente.
No entanto, o culto que agrada a Deus
nasce do coração, da adesão interior, desse nosso centro íntimo de onde nascem
nossas decisões e projetos.
Em toda religião há tradições que são
“humanas”: normas, costumes, ritos, devoções... que nasceram para ajudar a
viver a experiência religiosa em uma determinada cultura. Podem fazer bem; mas
podem causar muito dano quando nos dispersam e nos afastam da Palavra de Deus.
Elas nunca devem ter a primazia.
Não podemos esquecer nunca do que é
essencial.
Neste sentido, Jesus foi um “transgressor”
porque sua missão estava centrada em “destravar” a vida das pessoas pelo
peso das tradições e ritos religiosos. Suas palavras, tomadas de Isaías,
apontam diretamente para o coração: “Este
povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta
o culto que me prestam, pois as doutrinas
que ensinam são preceitos humanos”.
Tais palavras teriam que se converter,
para o seguidor de Jesus, em um questionamento sempre atual. Onde creio encontrar
Deus? Nas normas, nos ritos, nas crenças... ou no coração e na vida? Sem
dúvida, o comportamento pessoal será radicalmente diferente se identificamos a
Deus com nossas crenças e ritos ou se o experimentamos no mais profundo de
nosso ser e no serviço em favor da vida. No primeiro caso, haverá
fanatismo-legalismo-moralismo; no segundo, respeito-amor-compaixão-serviço.
O decisivo é o “lugar” onde vivemos a experiência
de encontro com Deus. É verdade que o próprio Jesus nos
advertiu que Ele não veio a este mundo para “suprimir” a Lei e os Profetas, ou
para acabar com a “religião”, mas para transformar qualitativamente, para
“levar à plenitude” a antiga religião (Mt 5,17).
Em outras palavras, o que Jesus deixou
claro, com sua forma de viver e com seus ensinamentos, é que o centro da
religião não está nem no templo, nem nos rituais, nem no sagrado, nem na
submissão às normas religiosas, nem nos dogmas e suas teologias, mas que está
na práxis, numa ética, num projeto de vida, numa forma de viver, que se centra
e se concentra na bondade para com todos de maneira igual, no amor sem
limitações nem condicionamentos, no serviço gratuito e generoso. Isso se traduz
e se realiza no respeito à vida humana, na defesa da vida, da dignidade e dos
direitos de todos.
Isto quer dizer que Jesus deslocou a
religião, tirando-a do templo, dos sacerdotes e seus hierarcas, separando-a dos
ritos, antepondo-a ao sagrado. E a colocou no centro da vida. Mais ainda, a
ampliou e a estendeu à vida inteira, não a reduzindo a determinados momentos da
vida, a espaços separados, a gestos privilegiados, a objetos e personagens com
quem é preciso manter uma relação de abaixamento e submissão. É assim como
Jesus revela e expressa a “humanização de Deus”.
Seu modo livre de ser e viver nos
revela “a humanidade de Deus”.
Texto bíblico:
Mc 7,1-8.14-15.21-23
Na oração: sua vivência cristã está mais centrada
no cumprimento de normas, ritos, leis... ou no serviço e cuidado para com os
outros? Seu “culto” a Deus é expressão de um compromisso ou um rito vazio,
assumido por imposição e medo?
Sua experiência de encontro com Deus
só se dá nos momentos de celebração ou no ritmo da vida?
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